Dirigimos o primeiro e o último VW Gol, que sai de linha após 42 anos
Fim de jogo para o VW Gol. A mais autêntica representação do carro brasileiro não teve vida fácil. Agora é descontinuado como o mais vendido da história
Olhe ao redor, no trânsito, e certamente você verá um Volkswagen Gol. Com mais de 8,5 milhões de unidades fabricadas em 42 anos, o carro mais popular do Brasil é parte da paisagem. Mas ele está saindo de linha nesta semana, mais exatamente na sexta-feira, quando a fábrica de Taubaté (SP) entrará em férias coletivas.
Contudo, não fosse a crise do petróleo, o Gol teria sido ofuscado por um esportivo com plataforma do Passat, pois foi esse o pedido de Rudolf Leiding, que havia sido presidente da VW do Brasil de 1968 a 1971, em uma visita oficial ao país em 1974.
Leiding deixou a operação brasileira para comandar a matriz na Alemanha e já nos primeiros dias forjou as bases do Volkswagen Golf, o substituto do Fusca na Europa. Mas o seu pedido também acabou levando ao substituto do Fusca no Brasil.
Alguns projetos autorizados pelo executivo já haviam exercitado a engenharia brasileira, como a Brasilia e o SP2. Seu novo pedido era por um esportivo com a moderna base do Passat e motor refrigerado a água que muitos tratavam como um “SP3”.
Mas a crise do petróleo fez o plano ser engavetado e acelerou a necessidade de um carro barato e econômico para o Brasil. Era o início do Projeto BX, que culminaria no lançamento do Volkswagen Gol em 1980, após cinco anos de desenvolvimento. Até conceitos descartados para o Golf foram reaproveitados.
A Volkswagen queria usar o motor MD 1.5 do Passat, mas não havia volume de produção suficiente naquele momento. A solução seria recorrer ao motor refrigerado a ar, do Fusca, mas sem inviabilizar a troca pelo motor mais moderno. Até mesmo porque Leiding já previa uma família de carros derivada da mesma base.
Por sorte, o conceito EA-276, criado na Alemanha em 1969, já previa o uso de motor a ar dianteiro entre um conjunto de suspensão dianteira McPherson. O criador do protótipo, Philipp Schmidt, foi enviado ao Brasil como diretor de Pesquisa e Desenvolvimento e comandou o projeto do Gol, enquanto a equipe do designer Márcio Piancastelli cuidou das linhas, inspiradas no VW Scirocco e no Audi 80.
O resultado de um esforço multinacional foi conhecido em maio de 1980, nas páginas de QUATRO RODAS. O Volkswagen Gol combinava linhas modernas e plataforma nova com um motor velho conhecido dos mecânicos. Mas isso não foi, exatamente, um argumento de venda.
Agora instalado na dianteira, o motor 1300 boxer levava a sério a refrigeração a ar: os cilindros posicionados à frente ficavam mais frios. Por isso, mudanças nos cabeçotes e no sistema de refrigeração, com uma ventoinha dentro de um painel guia e a dispensa do radiador de óleo. Mas um fluxo otimizado e filtro de ar que admitia ar quente ou frio, conforme a condição, elevou a potência dos 46 cv do Fusca aos 50 cv (SAE) no Gol.
Em nosso primeiro teste de pista, o Gol precisou de 30,3 s para chegar aos 100 km/h, mais que um comercial de televisão. Desempenho fraco repetido nas vendas: encalhou nas lojas e a Volks fechou 1980 com prejuízo pela primeira vez em 20 anos de Brasil.
DE VOLTA PARA O PASSADO
Dirigir um Gol de 42 anos atrás é uma experiência sensorial. O cheiro é o mesmo dos Fusca, mas a posição de dirigir e o conforto de manusear o carro escancara a evolução frente ao Fusca. O tato também é ativado pelo toque frio do painel, de lata pintada de preto. Mas virar a chave e notar a vibração e o barulho típico vindo da dianteira confunde, mas justifica o apelido “batedeira”.
O exemplar bege, emprestado por um colecionador, é um Gol L 1980 sem o opcional de distribuidor eletrônico – ou seja, preserva o platinado – e menos de 60.000 km rodados. É um carro com rodar macio, direção leve, mesmo que não tenha qualquer tipo de assistência (nem para os freios, frise-se), e câmbio excelente. Se não é veloz, pelo menos em baixas velocidades, o primeiro Gol responde bem. Esse motor não era potente, mas entregava muito torque desde cedo.
O acervo histórico da Volkswagen na fábrica da Anchieta, em São Bernado do Campo (SP), sem previsão de ser aberto ao público, permite acompanhar a longa evolução do Gol. Ou boa parte dela, pelo menos, pois do Gol BX ao sucesso do primeiro Gol GTi houve muita história.
Na tentativa de alavancar as vendas, o Gol BX ganharia motor 1600 com dupla carburação e 55 cv como opção em 1981, mesmo ano do lançamento do Voyage já com o motor MD 1.5 refrigerado a água de 78 cv. O Gol só ganharia um radiador em 1984, com o lançamento do Gol GT 1.8 de 99 cv. Um 1.6 passaria a ser oferecido em 1985. Foi quando o Gol passou o Fusca nas vendas anuais.
O Gol seria atualizado pela primeira vez 1987, com para-choques envolventes, faróis retangulares, setas maiores e novas lanternas. O novo visual e os famosos motores 1.6 e 1.8 AP fizeram o Gol fechar o ano líder de vendas pela primeira vez, superando o Chevrolet Monza. Era o início da transformação em um sucesso de vendas sem precedentes: seria líder pelos 27 anos seguintes, até 2014.
O Gol GTi entraria para a história como primeiro carro nacional com injeção eletrônica, em 1989. Mas o exemplar 1993 na cor vinho já representa a terceira fase da primeira geração, de 1991. Faróis e a grade são ainda mais estreitos e renderam o apelido “chinezinho”, um visual mantido até 1996 para o Gol 1000, versão 1.0 lançada em 1993.
BOLA NO GOL
Linhas arredondadas ditavam o que era moderno nos anos 1990 e o compacto da Volkswagen seguiu a tendência. A segunda geração do Gol, apelidada carinhosamente de “Gol Bolinha”, foi lançada em 1994 com carroceria inteiramente nova e mais espaçosa – apertada para os padrões atuais, porém – sem mudar as medidas externas.
Na prática, também foi a geração mais longeva do Gol: só sairia de linha 20 anos depois, em 2014. Foi tempo suficiente para pagar os vultuosos investimentos que somaram 400 milhões de dólares, em grande parte consumidos por robôs e ferramentas de automação na fábrica de Taubaté (SP). Diferença de geometria, como resultado de uma soldagem mal feita, era passado.
A pedido dos clientes, o para-brisas foi afastado e o painel avançou, envolvendo o motorista. Agora botões e alavancas estavam mais próximos e os novos instrumentos tinham leitura mais fácil. Na mecânica, injeção eletrônica, catalisador e sonda lambda deixavam de ser luxo para se tornar padrão em nome da redução de poluentes, em todos os motores: 1.0, 1.6, 1.8 ou 2.0 GTI, e suas respectivas versões a álcool.
A evolução viria com o Gol G3, em 1999, com grade integrada ao para-choque, faróis com lentes de plástico e traseira com visual mais limpo, inspirada no Golf. Agora o Volkswagen estava alinhado com a realidade global da marca.
E isso se estendia à cabine, com acabamento esmerado (algo que nenhum outro Gol teve). Até airbags e freios ABS figuravam entre os opcionais. Nessa época o Gol era o carro de entrada e cobria a linha até Golf. Mas um Gol tão sofisticado deixou de fazer sentido com o lançamento dos Polo e Fox.
O Gol G4 surgira em 2005 sem mudar plataforma ou motores. Ainda que representasse metade das vendas da Volks no Brasil, estava sendo piorado pela primeira vez, em nome dos custos: acabava até com o Gol Special, que ainda era o G2, mas mantinha o mesmo preço inicial.
Faróis mais altos e alongados, novos para-lamas, capô e para-choques forçavam alguma relação com Golf e Passat. Na traseira, a vigia roubou espaço das colunas e o vidro traseiro cobriu a estrutura da tampa do porta-malas.
O painel recuado e sem console integrado aumentava a sensação de espaço na cabine, mas o quadro de instrumentos minúsculo vinha do Fox e todas as saídas de ar eram iguais para reduzir custos. Este Gol só reforçou sua vocação de carro de trabalho e seguiu em produção até 2014.
TERCEIRA CHANCE
Por sorte, a Volkswagen não desistiu do Gol. A terceira geração foi lançada em 2008 na tentativa de levar para o Gol as qualidades do Polo, um ótimo carro que não vendia. O investimento de 1 bilhão de dólares foi feito para usar a plataforma PQ24 do Polo, suspensão e direção do Polo europeu (PQ25) e eixo traseiro do G4. Em termos de dinâmica e desempenho, se tornou referência. A qualidade construtiva era notável e o acabamento, honesto.
Uma nova geração de carros populares nacionais começava a despontar quando veio uma atualização, em 2012. Com faróis e lanternas mais quadrados, a exemplo do Fox, esse design marcaria o fim da liderança do Gol nas vendas em 2014. Ele passaria a lutar pela sobrevivência.
Mudaria novamente em 2016, com direito a novo painel, para-choques e lanternas. Um segundo retrabalho seria promovido em 2018, com os faróis maiores da Saveiro e a adoção de câmbio automático. Era algo que todo mundo queria, mas não em um Gol: essa versão vendeu pouco. Quem até vendia bem era o Gol 1.0, que chegou a despontar nas vendas por alguns meses graças a frotistas e locadoras.
O Gol Last Edition é que, ao seu modo, quebrou essa regra. Dos 1.000 fabricados, 650 ficaram no Brasil e rapidamente ganharam suas vagas nas garagens de colecionadores para lembrar os 42 anos de história.
É o logotipo na forma da roda orbital, a fonte dos logotipo à moda de 1980 e a faixa preta na tampa, como nos anos 1980, que ornam um dos VW Gol mais completos já feitos.
Ao volante não se nota o peso da idade, mas da direção hidráulica (e não elétrica), a falta de controles de estabilidade e tração, e o tanto que seus conceitos de espaço e ergonomia estão datados.
Este último VW Gol é como um grande artilheiro em fim de carreira: não joga como antes, mas sua história, seus feitos e suas goleadas têm peso em campo. E serão lembrados por muito tempo.