Democrata: a história do carro esportivo nacional que virou ficção
A tortuosa trajetória do Democrata, aquele que seria o mais avançado carro nacional de sua época
* Reportagem originalmente publicada em dezembro de 2006
Antigomobilista da cidade de Passo Fundo (RS), o empresário Rogério Azambuja acaba de ressuscitar um modelo nacional raríssimo. Ele marcou história nos anos 60 não apenas pelo design, inspirado no Chevrolet Corvair americano.
O Democrata, nome de batismo do veículo, surgiu a partir da ambiciosa idéia do empresário Nelson Fernandes de produzir um automóvel de luxo com capital e projeto brasileiros, além de preço bastante competitivo.
Com promessas como a de fabricar 350 veículos por dia, o mesmo que a Volkswagen, líder do mercado na época, Fernandes conseguiu atrair quase 90 000 investidores para o projeto e chegou a montar cinco protótipos completos do veículo. Só que a história não teve final feliz.
Muitos consideraram seus planos megalomaníacos e sua empresa sofreu devassas do Banco Central e da Polícia Federal. Até uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi instalada em Brasília para investigar a questão.
Fustigado pelas autoridades e pela imprensa (QUATRO RODAS publicou várias matérias denunciando que a empresa não tinha sequer livros de contabilidade), Fernandes foi à lona, antes de iniciar a produção em série.
Nelson Fernandes foi uma espécie de Preston Tucker brasileiro. A exemplo do americano que lançou em 1948 o Tucker, um carro revolucionário para competir com as três montadoras gigantes dos Estados Unidos (GM, Ford e Chrysler), as idéias ambiciosas de Fernandes causaram um grande alvoroço na indústria brasileira de automóveis na década de 60.
Idealistas e polêmicos, Tucker e Fernandes provocaram um enorme barulho, mas faliram antes de realizar seus respectivos sonhos.
A idéia de Fernandes era mesmo para lá de ambiciosa. Depois de registrar em 1963 sua empresa, a qual batizou como Indústria Brasileira de Automóveis Presidente (Ibap), resolveu apostar alto, investindo no lançamento de um carrão para competir diretamente com modelos luxuosos como o Simca Chambord.
Um protótipo de quatro portas foi apresentado. “Cometi o erro de colocar nele um motor do Corvair americano provisório enquanto o definitivo era preparado”, diz o empresário, ciente dos rumores que a substituição causou.
Ele conta que também planejava um carro popular, que seria o principal produto da Ibap, e um utilitário. O Democrata definitivo tinha carroceria cupê de fibra de vidro (outra ousadia), suspensão independente nas quatro rodas e um motor italiano de seis cilindros instalado na traseira (era o único item importado do projeto) com transmissão acoplada ao bloco.
O acabamento do interior do veículo era caprichado, com painel de jacarandá, volante esportivo e bancos reclináveis de couro.
Os cinco protótipos do Democrata eram levados em carretas para exibição em vários lugares do país. As viagens visavam divulgar o projeto e atrair investidores para iniciar a produção em série do automóvel. Estes teriam direito a dividendos da Ibap, prioridade na aquisição do Democrata e desconto na compra do modelo.
Uma fábrica de 300 000 metros quadrados foi erguida em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. “Os 120 funcionários da Ibap também eram sócios-proprietários da empresa”, afirma Fernandes. “A motivação para trabalhar era grande e não havia desperdícios, eles sabiam que aquilo também era deles.”
Ferro na fibra
Aos poucos, porém, os planos começaram a afundar. Primeiro os críticos questionaram a viabilidade do projeto. Naquela época, carrocerias de fibra de vidro eram mais comuns em veículos esportivos, não em carros fabricados em larga escala, como o Democrata.
Para acabar com essa desconfiança nas apresentações do carro, os vendedores da Ibap propunham aos clientes martelar a carroceria com uma barra de ferro.
Muito mais danosa ao futuro do Democrata foi a incrível sucessão de problemas que atingiram o projeto. Um navio cargueiro carregado de componentes mecânicos italianos para a fábrica da Ibap foi interceptado, sob alegação de contrabando.
Diante das dificuldades de importação, Fernandes apostou noutra solução: comprar a Fábrica Nacional de Motores, a popular FNM, uma estatal que estava sendo vendida na época pelo governo. A oferta de Fernandes teria sido recusada pelo Ministério da Indústria e Comércio sem justificativa.
Em seguida, vieram as pressões das autoridades e da imprensa. A CPI para averiguar se a empresa estava dando golpe nos investidores foi instalada em junho de 1966. Aos poucos, os clientes começaram a desistir das cotas, graças a essa propaganda negativa.
O golpe de misericórdia veio quando o Banco Central, depois de uma vistoria na fábrica, elaborou um laudo dizendo que não havia por lá a quantidade de profissionais gabaritados para construir carros em série, nem contratos com fornecedores para garantir a continuidade da produção.
Fernandes respondeu a um processo por “coleta irregular da poupança popular sob falsa alegação de construir uma fábrica de automóveis”. Dois anos depois, ele fechou a Ibap. Além dos protótipos, ficaram no galpão em São Bernardo do Campo dezenas de carcaças de fibra de vidro e centenas de peças.
O empresário acabou inocentado, quase duas décadas depois, mas o estrago já estava feito. Ele responsabiliza a imprensa por uma verdadeira campanha para desacreditar o projeto. “Por influência de empresários de São Bernardo do Campo, que teriam prometido pressões contra a Ibap como nem o ex-presidente Jânio Quadros conhecera”, diz ele.
O Democrata de Azambuja, um dos dois que sobraram inteiros dessa trágica história (o outro está em Brasília, no Museu do Automóvel), começou a renascer da sucata abandonada da Ibap, pelas mãos de uma dupla de mecânicos de São Bernardo do Campo.
“Quando eu era criança, vi o carro na cidade e fiquei maluco por ele”, afirma José Carlos Finardi, 53 anos. Em 1989, ele soube que, dentro da fábrica fechada, havia ainda alguns carros. Conseguiu o telefone de Fernandes e, por cerca de 30.000 dólares, arrematou um lote de 25 carrocerias e três carros “recuperáveis”.
José Carlos concentrou os trabalhos de restauração no carro que parecia mais inteiro. “Tivemos que encomendar uma réplica do pneu e recuperar várias peças do motor que estavam corroídas”, afirma o mecânico.
No total, o processo de restauração prolongou-se por quase três anos. O Democrata voltou a andar e chegou a ser exibido em encontros de antigomobilistas em Brasília e Águas de Lindóia, no interior de São Paulo.
Por descuido da dupla de mecânicos, o valioso carro acabou ficando parado na oficina por muito tempo. No ano retrasado, eles voltaram a investir em sua recuperação, mas deixaram o trabalho pela metade. Foi quando venderam o carro a Azambuja, que terminou o serviço.
O maior desafio, segundo ele, foi colocar o motor em operação. O bloco que acompanhava o carro estava trincado e, depois de várias tentativas frustradas de soldá- lo, foi substituído por outro enviado pelos Finardi.
Outra batalha foi acertar o ponto de ignição. Sem nenhuma referência, Azambuja e seu fiel escudeiro, o mecânico Vilson Passos, que assumiu a empreitada de botar o carro para andar, contaram com a ajuda de um amigo engenheiro mecânico, especializado em carburação.
Itens de acabamento como calotas e rodas foram feitos em Passo Fundo mesmo. Hoje o carro roda de duas a três vezes por semana, em nome do condicionamento físico. O motor V6 agora é que começa a ficar mais “solto”, nas palavras do novo dono.
Se as linhas em dia com o que havia de novo nos Estados Unidos e Europa ainda chamam atenção, ao volante fica mais fácil fazer ideia da evolução que o Democrata representava no cenário nacional dos anos 60.
À espera do motorista estão bancos individuais na frente separados por um console, revestimento de couro, painel de jacarandá emoldurando o completo conjunto de instrumentos que incluía até conta-giros.
Motor ligado, um ronco encorpado ressoa na cabine. A alavanca do câmbio de quatro marchas está bem localizada e o volante Valrod de três aros não exige a força que seria de se esperar da direção sem assistência. Em pouco tempo acostuma-se com o câmbio, ainda não totalmente desperto de sua hibernação de décadas.
Comparar sua dirigibilidade com a dos Aero-Willys e dos Simca, dois de seus contemporâneos, seria injusto. Sob todos os aspectos, a começar pela posição de dirigir, o Democrata se mostra um carro bem à frente de seus pares na época.
Anos de produção: | de 1963 a 1968 |
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Motor: | traseiro, longitudinal, V6, 2 527 cm3, duplo comando de válvulas no cabeçote, bloco de alumínio fundido |
Potência: | 120 cv a 4.500 rpm |
Torque: | n/d |
Diâmetro x curso: | 84 x 76 mm |
Compressão: | 8,2:1 |
Carburação: | dupla |
Transmissão: | manual de 4 velocidades, tração traseira |
Suspensão: | Dianteira: independente, braços triangulares superiores, braços de força inferiores, molas helicoidais, amortecedores hidráulicos de dupla ação. Traseira: semi-eixos oscilantes, braços longitudinais, molas helicoidais, amortecedores hidráulicos de dupla ação |
Freios: | tambor nas quatro rodas |
Entreeixos: | n/d |
Rodas: | aço, 15 x 5 |
Peso estimado: | 1.150 kg |