A pacata Santa Vitória do Palmar (RS) é rodeada pelas gigantescas lagoas gaúchas, que alagam as grandes planícies ao redor da estrada que nos leva ao Chuí, extremo sul do Brasil. Uma paisagem que vale a pena ser visitada, mas, sem dúvida, não necessita de oito horas seguidas de contemplação.
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Mas foi assim, carregando um carro elétrico por toda uma tarde na tomada do banheiro de um posto de gasolina, que a viagem até então perfeita teve seu choque de realidade. A ideia da expedição era sair de Itu – no interior de São Paulo e sede da Kia no Brasil – e seguir até a capital do Uruguai, Montevidéu.
Nos 2.000 km de expedição, eu e mais dois jornalistas seguiríamos no recém-lançado Kia EV6 (testado na edição 756) com o objetivo de analisar o preparo de nosso país (e também do vizinho) para viagens com veículos elétricos.
Com autonomia de 522 km (WLTP), o crossover que será lançado no Brasil em 2023 logo pareceu uma escolha ideal: seu farto alcance diminuía as chances de problemas. De Itu a Florianópolis (primeira pernoite da viagem) foram 763 km, o que exigiu uma inevitável parada de recarga. Em uma rota tão longa, entretanto, o tempo de recarga também era uma preocupação, já que precisávamos dormir suficientemente para a segunda perna da jornada.
Com prazos apertados, logo deu para conhecer o que em países eletrificados já é comum, a anxiety range (“ansiedade do alcance”, em tradução livre).
Esse novo sentimento corresponde ao hábito de, o tempo todo, ficar encarando o quadro de instrumentos, comparando a autonomia com a distância até o destino. Especialistas do mercado concordam que essa angústia é um dos maiores percalços para a venda de carros elétricos.
Por vezes, o silêncio e a agilidade do EV6 dava lugar à calculadora, a fim de descobrir quanto de bateria precisaria haver no primeiro ponto de parada para que, em cerca de uma hora, o crossover pudesse ser carregado devidamente.
Hoje em dia, modelos como o Kia EV6 apostam em unificar GPS e um banco de dados de eletropostos, que calculam o tempo de chegada com base na velocidade média e nas tomadas no caminho, levando em conta também variáveis como o relevo do percurso e o trânsito.
Como essa função ainda está indisponível no Brasil, recorremos à calculadora do celular e a aplicativos como o PlugShare, que, preenchidos pela comunidade de usuários, têm certo grau de incerteza.
A potência do carregador também importa bastante, e é necessário ajustar sua viagem com base nisso. A primeira parada, na cidade de Registro (SP), aproveitou os 66 kW à disposição para ser breve, enquanto a segunda, na região metropolitana de Curitiba, com 22 kW à disposição, acabou sendo alinhada a um almoço tardio.
Enquanto as baterias de recarga ultrarrápida não saem do papel, redes como as da Tesla nos EUA buscam unir até espaços de coworking para tornar a espera mais agradável ou disfarçada.
A expedição fez isso em Araquari (SC), onde a última parada do dia foi feita junto a um café da tarde e conferência de e-mails e outros assuntos pessoais. Ainda que teoricamente desnecessária, a terceira recarga do dia foi um ato de prudência.
A todo instante, o Kia EV6 chamava a atenção pelo design. Também era notável a curiosidade dos funcionários, finalmente vendo um elétrico utilizando a infraestrutura instalada. Sem prática, foram vários minutos para que os frentistas do posto Sinuelo conseguissem liberar o ponto instalado em parceria com a BMW.
Calmaria e tormenta
Os 455 km do segundo dia foram percorridos com tranquilidade e, até Porto Alegre, ocorreu uma única parada para carregamento, feita no horário de almoço.
Na capital gaúcha, o hotel também oferecia um wallbox, de modo que a ida para Pelotas (RS), no terceiro dia, foi ainda mais tranquila e a única sem paradas, já que a autonomia do EV6 dava conta facilmente do recado.
Pela programação, haveria uma recarga em Pelotas, última parada antes de Montevidéu. Acontece que o eletroposto no hospital Unimed local estava inoperante, e logo se iniciou um efeito dominó, que garantiria as melhores histórias da viagem.
Sem a recarga robusta, coube à equipe conectar o crossover da Kia à tomada do hotel, onde, com sorte, chegava-se a 1 kW. Nesse ritmo, encher a bateria completamente levaria mais de um dia, e as gravações da expedição foram resumidas para que fosse possível alcançar a próxima recarga rápida, na fronteira entre o Brasil e o Uruguai.
No domingo, a ideia era ir de Pelotas a Montevidéu com uma ou duas paradas, finalizando a viagem com um churrasco à moda uruguaia.
Logo pela manhã, entretanto, o responsável técnico da Kia, Márcio Alexandre, nos deu uma notícia ruim: além de atrasar a partida, seria preciso uma parada no meio da BR-471 para, em tomada convencional, adicionar carga extra.
Com “pé leve”, regeneração máxima de frenagem e modo Eco entre a cidade pelotense e Santa Vitória do Palmar, o EV6 chegou a um pequenino posto no distrito de Curral Alto, onde vivem cerca de 1.500 pessoas e a ação humana é rara entre as paisagens. Contactado com antecedência por Márcio, o posto permitiu o uso de uma tomada no banheiro.
O planejamento incluía um carregamento mínimo rumo à cidade uruguaia de Chuy, com um eletroposto de boa potência 300 m após a fronteira com o Brasil. A instabilidade da rede elétrica, porém, fez com que o carregamento fosse extremamente lento.
Com cerca de 1h para acrescentar 10 km de alcance, o grupo teve tempo de contemplar a paisagem, assistir em uma pequena TV à primeira corrida de Fórmula 1 do ano, contar piadas e provar o refrigerante local.
Depois de oito horas, o painel do EV6 finalmente indicou os 117 km de autonomia necessários para sair do Brasil. A margem de erro que seria acrescentada foi substituída pela atitude ousada do ex-piloto de testes César Urnhani, que calibrou o carro com 50 psi em cada roda.
Ciente dos riscos, Urnhani, que realizava um trabalho institucional para a Kia, assumiu o volante e partiu de Curral Alto às 19h15 do domingo.
Finalmente, cruzamos a avenida que separa Chuí (Brasil) de Chuy (Uruguai). Logo avistamos a tomada, que de fato estava operante às 21h de domingo, mas não continha o cabo que se liga ao carro.
Segundo o gerente geral da Kia do Uruguai, Ricardo Joubanoba, o país subsidia não apenas os carros elétricos (que, segundo ele, custam cerca de metade do que custariam sem abatimentos), mas também itens de infraestrutura como carregadores domésticos e… cabos.
Desse modo, explicaram os uruguaios de Chuy, o eletroposto tinha seu conector retirado durante a noite para evitar vandalismo. Quem precisasse de uma carga noturna tinha que levar o seu.
Com mais de 12h de viagem, o grupo precisou retornar ao Brasil, enquanto o pessoal da Kia permaneceu na fronteira e, na manhã de segunda-feira, finalmente conseguiu um cabo para fazer a recarga. Era o fim da viagem. Seguimos para Montevidéu ao volante da Kia Carnival.
Ainda que, em Chuy, o detalhe do cabo tenha causado problemas, eram vastos os pontos de carregamento no Uruguai. Só os instalados pela companhia energética UTE são 76, a maioria com 43 kW – suficientes para carregar um Kwid E-Tech de 15 a 80% em 40 minutos.
O EV6 se saiu bem na jornada, sem apresentar problemas. Mas o Brasil, por outro lado, tem um longo caminho a percorrer. Mais longo que nossa viagem de Itu a Montevidéu.