Em 2004, compramos um carro caindo aos pedaços para dirigi-lo por 300 km
Relembre quando denunciamos uma assombrosa frota que variava de 30% a 70% dos veículos que rodam nas grandes cidades brasileiras
Publicado originalmente em outubro de 2004
Os leitores de QUATRO RODAS não estão acostumados a ver nas páginas da revista carros como o Fiat desta matéria. Nas grandes cidades brasileiras, no entanto, assombrações mecânicas como ele estão longe de causar espanto. A frota fantasma vem crescendo de forma assustadora no país nos últimos anos, impulsionada pelo combustível da impunidade.
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Para testar a liberdade de movimento de que gozam os veículos irregulares, andamos com o velho 147 por algumas das mais movimentadas ruas e avenidas de São Paulo entre os meses de agosto e setembro. As conclusões da experiência são de arrepiar.
O veículo, se é que podemos considerá-lo um veículo, tinha os faróis caindo e nenhuma luz de freio. Com o motor rateando, o escapamento expelia uma nuvem negra de óleo queimado a cada acelerada. Para finalizar, a suspensão encontrava-se em frangalhos, fazendo com que o motorista voltasse ao tempo das diligências.
O automóvel pertencia a um mecânico de São Paulo, que pagou por ele 500 reais. Para regularizar o carro, o proprietário teria que gastar quase 7000 reais. Desse total, 1600 reais seriam usados na quitação das multas e impostos atrasados e o restante para financiar uma reforma completa no veículo (ver quadro ao fim do texto).
A reportagem de QUATRO RODAS circulou por 300 quilômetros com o velho Fiat 147 sem ser importunada pelas autoridades. O veículo passeou pelas marginais Pinheiros e Tietê, além das avenidas dos Bandeirantes, Aricanduva, Radial Leste e Faria Lima, entre outros pontos movimentados de São Paulo. Impossível não chamar atenção ao circular com o Fiat 147. A reação dos motoristas que emparelhavam com o veículo era bastante diversa.
Alguns o desprezavam, torcendo o nariz e fechando as janelas. Outros mostravam-se indignados, xingando o condutor daquela lata velha. Compungida com a situação, uma pequena parcela demonstrou solidariedade, gritando alertas diante da passagem do 147. “Moço, seu carro vai explodir!” ou “Motorista, a lanterna está caindo!” foram algumas das demonstrações de companheirismo.
Seria até engraçado, caso não estivéssemos atravancando o trânsito com o lento avanço do Fiat e contribuindo para poluir ainda mais o ar da cidade. Numa inspeção veicular realizada na oficina Auto Lapa Serviços Automotivos, em São Paulo, os técnicos constataram que o carro emite três vezes mais poluentes que o limite legal.
Além do mais, o fato de o automóvel rodar 300 quilômetros sem estar com a documentação em dia é uma afronta aos cidadãos que se desdobram para pagar pontualmente os impostos de seus respectivos veículos. “A impunidade premia os maus motoristas e os espertalhões, é uma distorção absurda, um convite a todas as outras pessoas a agirem da mesma forma”, afirma Roberto Scaringella, um dos mais respeitados consultores em trânsito do Brasil. “Não adianta tornar as leis mais rigorosas, se a fiscalização continua falha e deficiente.”
Impunidade
A frota de carros fantasmas tornou-se um problema nacional. Em alguns locais, como o Rio de Janeiro, os carros não licenciados já representam a maioria. Do total de 3,5 milhões de veículos registrados no estado, nada menos que 77% não tinham a documentação em dia até julho deste ano. “O porcentual deve cair até dezembro, pois muita gente usa o 13º salário para quitar as dívidas do carro”, diz Márcio Colmerauer, assessor técnico da diretoria de veículos do Detran fluminense. Nesse caso, o índice de 77% cairia para “apenas” 60%, considerando a média registrada nos dois últimos anos.
Em Minas Gerais, que possui a segunda maior frota do país, até agosto apenas metade dos carros estava rodando com a documentação regularizada. Em São Paulo, três em cada dez veículos não poderiam circular, mesma situação registrada no Rio Grande do Sul. Na maioria dos casos, o atraso no pagamento das multas impede o licenciamento.
“Alguns veículos autuados têm mais de 20 anos de uso e, por vezes, valem menos que o valor cobrado pelas infrações praticadas”, afirma Carlos Ubiratan Santos, diretor-presidente do Detran gaúcho. “A crise de poder aquisitivo agravou o problema nos últimos anos”, diz Emilio Lopes, diretor da divisão de registro e licenciamento do Detran de São Paulo.
Muita gente prefere arriscar e continuar rodando com o veículo, pois são boas as chances de passar impune pelas ruas. Nessas condições, o condutor tende a se preocupar menos com as regras de trânsito e com a conservação de seu carro, transformando-se numa ameaça em potencial nas ruas, avenidas e estradas. Se o automóvel um dia for apreendido pela polícia, o motorista simplesmente o abandona no pátio, criando um novo tipo de problema.
Na cidade do Rio de Janeiro, para se ter uma idéia, até o início deste ano não havia lugar para abrigar novos veículos recolhidos. Durante as blitze, os policiais só podiam reter os documentos dos motoristas e mandar que guardassem o carro em casa ” um procedimento previsto pelo Código de Trânsito.
Recentemente, o Detran fluminense alugou dois pátios, um na capital e outro no município de Duque de Caxias. Ainda assim, eles têm apenas 7000 vagas, um número absolutamente desproporcional em relação à quantidade de veículos irregulares que circulam pelas ruas do estado (2,7 milhões). A situação em São Paulo é parecida. Segundo dados do Detran, a cidade tem quase 2 milhões de proprietários que não licenciaram ainda seus veículos.
Trata-se de uma frota maior que a de estados como Pernambuco e Bahia. Existem na capital paulistana apenas dois pátios para receber os automóveis recolhidos (além de um só para motos), com capacidade total para 6800 veículos. A exemplo do Rio de Janeiro, os guardas utilizam com freqüência em São Paulo o recurso de apreender somente os documentos dos carros irregulares. “Desde que sejam falhas menos graves, como a falta do extintor de incêndio”, afirma o tenente-coronel Valter de Oliveira, do 34º Batalhão da PM.
Falta de vagas
Caso as autoridades resolvessem limpar as ruas dos veículos irregulares, teriam que ser construídos quase 600 outros pátios na cidade. “Nem países do primeiro mundo como a Dinamarca e a Suécia teriam condições de resolver de uma hora para outra um problema desses”, afirma Arnaldo Pazetti, responsável pela divisão de fiscalização do Detran paulista. Apesar das evidências, ele não admite que a falta de vagas nos pátios alimente a impunidade nas ruas paulistanas.
“Há espaço para guardar tudo o que os policiais apreendem nas blitze”, diz ele. Não é bem assim. Em 3 de setembro, a reportagem de QUATRO RODAS acompanhou uma operação da Polícia Militar no bairro do Limão, zona norte de São Paulo. Os automóveis recolhidos tiveram que ser encaminhados ao município de São Caetano do Sul, já que não havia vagas na capital naquele dia.
Como o problema se transformou numa bola de neve, as soluções ficam a cada dia mais difíceis. Há algumas tentativas para estimular a regularização da frota. No Rio Grande do Sul, os motoristas podem parcelar em até 12 vezes o IPVA atrasado e em oito as multas pendentes. Sergipe adotou um sistema semelhante. Já a fiscalização ineficiente é uma questão que não tem solução a curto prazo. Em São Paulo, a responsabilidade pela fiscalização das condições dos veículos e da documentação cabe à Polícia Militar, que possui 20000 homens na cidade.
Há dois anos, havia na cidade quatro batalhões com um total de 2700 soldados incumbidos em período integral de policiar o trânsito. Na teoria, a mudança multiplicou a quantidade de gente à caça de irregularidades. Na prática, em função do aumento dos índices de criminalidade registrado em São Paulo nos últimos tempos, o efetivo ficou sobrecarregado. “Se estivesse apenas por conta do trânsito, a tropa de 20000 soldados seria suficiente para dar conta do recado”, afirma Valter de Oliveira. “Mas é preciso entender que a cidade tem hoje outras prioridades, como o combate à violência. De tempos em tempos, organizamos blitze em pontos estratégicos que, além de prender os veículos que por ali passam, têm o efeito de desestimular as pessoas a andarem com automóveis sem condições.”
Depois de apreendido num comando policial, o carro irregular é guinchado ao pátio mais próximo ” ou até o lugar que tiver alguma vaga. O motorista tem um prazo legal de até 90 dias para reaver a sua posse. Para isso, tem de pagar os custos da estadia no estacionamento no Detran e apresentar a documentação regularizada. Caso contrário, o veículo vai para leilão. Em média, entre a confecção do edital, sua publicação e a organização da venda, levam-se mais 90 dias. Um terço dos veículos apreendidos não é mais reclamado por seus proprietários. Com isso, eles ficam um total de seis meses na posse do estado, o que ajuda a explicar a superlotação dos pátios dos Detrans. “A única solução seria mudar a legislação, concedendo um prazo bem mais curto para o estado poder executar o leilão”, diz Valter de Oliveira.
Desde o dia 10 de setembro, o velho Fiat 147 engordou a frota dos veículos apreendidos nos pátios de São Paulo. Depois de rodarmos várias semanas pelas ruas e avenidas da cidade sem sermos importunados, resolvemos fazer um teste bem mais ousado. Às 7 da manhã daquela data, entramos com a lata velha na rodovia dos Imigrantes, que liga a capital ao litoral sul paulista. Como a estrada é uma das mais policiadas do país, o objetivo era ver quanto o automóvel conseguiria rodar até ser interceptado pela fiscalização. Para nossa surpresa, quase chegamos à praia sem sermos importunados.
O Fiat completou 60 quilômetros na Imigrantes. Passou por três postos policiais, um pedágio, cruzou as áreas dos municípios de São Bernardo do Campo e Diadema e concluiu a descida da serra rumo ao litoral. A 20 quilômetros de Santos, cidade escolhida como nosso destino, fomos parados no município de Cubatão pelo soldado Vagner Beltran, da Polícia Rodoviária. Ele pediu os documentos do Fiat 147 e, depois de rodear o automóvel fazendo cara de quem não estava acreditando naquilo que via à sua frente, sacou o talão para formalizar a apreensão do veículo. “Não tem a menor condição de estar rodando por aí”, disse o guarda. É quase inacreditável que, somente depois de 300 quilômetros, ele tenha sido a única autoridade a tomar a iniciativa de encerrar a jornada daquela lata velha. “Está na hora de o poder público parar de empurrar a questão com a barriga e tomar medidas drásticas para diminuir o tamanho da frota pirata”, afirma Roberto Scaringella. “Caso contrário, o problema vai sair do controle.”
Retífica completa
Colocar o Fiat 147 usado nesta reportagem em condições mecânicas de rodar é uma tarefa pra lá de trabalhosa. Segundo os técnicos da Auto Lapa Serviços Automotivos, que avaliaram o carro, seria necessário arrumar nada menos que 39 itens do automóvel. O conserto ficaria em torno de 5150 reais. No quadro a seguir, conheça quais são os itens mais importantes que precisariam ser trocados ou retificados:
- Amortecedores dianteiros e traseiros
- Caixa de direção
- Cubo de roda dianteira
- Disco de freio dianteiro
- Farol dianteiro
- Lanterna da placa
- Lanterna da seta dianteira
- Lanterna traseira
- Radiador
- Retífica completa do motor
- Tambor de freio traseiro
Frota pirata
A quantidade de carros que rodam em situação irregular em alguns Estados
LOCAL | TAMANHO DA FROTA | VEÍCULOS NÃO LICENCIADOS |
Rio de Janeiro | 3.500.000 | 77 |
Minas Gerais | 4.100.000 | 54 |
São Paulo | 15.000.000 | 30 |
Rio Grande do Sul | 3.100.000 | 30 |
Rio Grande do Norte | 223.500 | 30 |
* Dados atualizados até agosto de 2004
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