Corrida maluca
Carros antigos, pilotos que fumam, churrasco no espeto, tanque improvisado... Na Classic Cup, vale tudo, até se divertir
Fim dos treinos livres e os pilotos se reúnem nos fundos do boxe número 1 do Autódromo de Interlagos. Apoiados em seus carros, com macacões amarrados na cintura, eles conversam animadamente sobre as condições da pista. Mas tem algo errado nesse cenário: barrigas proeminentes, um capô que se mantém aberto por um pedaço de madeira, pausa para fumar cigarros e espetinhos de carne devorados em poucos minutos. Nenhum dos pilotos aqui tem pinta de atleta, nem a assistência de profissionais como nutricionista e engenheiros. No máximo há um chefe de equipe e alguns mecânicos que cuidam de vários carros ao mesmo tempo. Essa é uma cena comum nas etapas do Campeonato Paulista de Automobilismo. Durante o fim de semana de corrida, Interlagos volta ao tempo em que o esporte a motor era tomado por cavalheiros mais interessados em arriscar suas vidas do que em aparecer para as câmeras. De todas as categorias do campeonato, nenhuma parece mais divertida do que a Classic Cup. Nela só participam veículos importados fabricados até 1979 ou nacionais descontinuados a partir de 1989, todos separados pela cilindrada (até 1200 cm3, 1201 a 1400 cm3, 1401 a 1600 cm3 e 1601 a 2 500 cm3). Também participam das mesmas provas outras três categorias de antigos (Speed, Turismo N e HistóricosV8), em geral mais caras.
Tantas divisões criam disputas improváveis, como um BMW 2002, raridade lançada em 1968, dividindo curva com Karmann-Ghia e um Passat brigando com dois Pumas. Até um Laika, o velho sedã quadradão vendido pela Lada no Brasil no começo dos anos 90, entra na brincadeira. A marca deixou o país há décadas, mas sobrevive nas pistas graças ao jornalista Flavio Gomes, dono de quatro veículos russos – além do Laika de corrida batizado de Meianov, ele tem outros dois Laikas de rua e um Niva. Foi o próprio Gomes que ajudou a criar a Classic Cup, após participar de um evento antes do GP do Brasil de F-1 de 2003 com seu DKW Belcar. “Fizemos uma exibição só com carros antigos. Como o número de participantes foi grande, vimos que havia interesse por uma categoria assim.”
O baixo custo (para os padrões do automobilismo nacional) é um dos chamarizes da categoria. “É possível fazer um carro com R$ 25 000, mas alguns passam dos R$ 100 000, dependendo do tipo de preparação”, diz Gomes. Os gastos para correr também são modestos, não passam de R$ 5 000 por prova. É por isso que o campeonato que começou como Historic Racing Cars conta com grid cheio: são pelo menos 30 pilotos em cada etapa da categoria, que até o fim do ano vai correr em Londrina (PR) e Mogi-Guaçu (SP) enquanto o Interlagos estiver em reforma para receber a F-1.
Sem glamour
Assim como o grid anda disputado, os boxes não ficam menos movimentados. Só que os personagens são bem diferentes do que Interlagos está acostumado a receber na F-1. Eu olho para um lado e vejo um mecânico todo sujo de graxa debruçado em um Puma. Junto dele, outro profissional revira um vidro cheio de parafusos à procura da peça ideal. Nenhum deles usa macacões e capacetes para proteção: aqui o uniforme inclui camiseta surrada, bermuda e até chinelos de dedo. Esse clima “semiprofissional” domina a Classic Cup – e a faz ser tão divertida. Só lá você verá carros remendados com fita adesiva e famílias inteiras acompanhando as provas em cadeiras de praia nos boxes. As equipes aproveitam o intervalo entre as corridas para almoçar. Nada de praça de alimentação nem os luxuosos bufês dos camarotes vips da Fórmula 1: aqui o cardápio inclui churrasquinho no espeto, sanduíches prensados na chapa e pastel. Vale também devorar um pão com mortadela servido em uma mesa improvisada nos fundos do boxe. Baixa gastronomia é o que há.
Chega a hora do briefing, realizado em uma pequena sala na torre de controle do autódromo. O ambiente tenso comum nas outras categorias aqui cede lugar a um clima tão descontraído quanto uma sala de faculdade. Uma das figuras mais engraçadas é Erick Grosso, um cara que você gostaria de conhecer na mesa de um bar. Há dois anos na Classic Cup, o empresário compete com um Fiat 147, escolhido por motivos afetivos. “Além de meu primeiro carro ter sido um 147, meu pai nasceu em Turim [cidade-sede da Fiat], então nem tive o que pensar.” Durante o bate-papo, sou chamado para o boxe vizinho. “Não quer fazer um lanchinho?”, pergunta Regina Calderoni, primeira mulher a competir na Stock Car. É normal esbarrar com personalidades do automobilismo nacional no paddock. A poucos metros dali conheço Luiz Evandro Pimenta, mais conhecido como Águia. Engenheiro de formação, ele resolveu seguir a carreira de piloto, como seus amigos Emerson Fittipaldi e José Carlos Pace. Águia competiu até o começo dos anos 90, quando abriu uma empresa no ramo de telecomunicações. Sua volta às pistas aconteceu na década seguinte graças à Classic Cup, conquistando o título de 2004 pilotando o mesmo Willys Interlagos que hoje é carro-madrinha da categoria.
Banho de sidra
Durante a corrida sobra tempo para cenas inusitadas. Poucas voltas após a largada lançada, um pneu furado obriga um dos Fusca a parar nos boxes. Com chave de roda em mãos, o mecânico leva quase duas voltas para trocar o pneu, deixando o piloto irritado com a demora. Quando o problema é mais sério, não há muito o que fazer. Sem tantas peças de reposição como as equipes de Stock Car e F-1, a saída é abandonar e esperar pela próxima prova. Mas aqui não há cobrança por resultados. Afinal, a Classic é feita para quem corre por diversão, não por obrigação. “Estamos aqui para competir, mas todos se respeitam”, diz Gomes. De fato, fora da pista o clima é de camaradagem. Após a bandeirada, sobra tempo para brincadeiras e o tradicional pódio com banho de champanhe. Ou melhor, champanhe, não. Aqui o banho é de sidra. Faz parte do show.