Você não conhece o seu Annibal, meu sogro. Pena. Apesar da espinhosa condição de parentesco que nos une, ele é uma simpatia. Sempre foi motociclista (será por isso que ela casou comigo?) e, apesar de seus 84 anos não permitirem mais que ele acelere uma moto, a velha paixão ainda está lá, no brilho dos olhos azuis, quando se toca no assunto. A grande moto de sua vida – assim como a mulher, todos nós a temos – foi uma Royal Enfield 1951, que ele reconstruiu com as próprias mãos. Fala dela com impetus de moleque, lembrando a sucessão de aventuras a que sobreviveu.
Eu lhe apresento o seu Annibal ao abrir esta matéria para dizer que as monocilíndricas inglesas que a maioria de nós viu apenas em filmes, fotos branco e preto ou nas produções de moda vintage estão de volta, finalmente, ao mercado brasileiro. Guiá-las, mesmo, apenas alguns felizardos senhores já em idade de longas histórias. Ou um dos atinados compradores de alguma da pequena série das Enfield indianas que chegaram ao Brasil no fim dos anos 90 – ainda sem a chancela do tão genuinamente Royal, apenas sob o nome colonial Enfield – e desapareceram em pouco mais de algumas dezenas de garagens bem arrumadas. Demorou, mas a empresa indiana conseguiu comprar o direito de usar o Royal (adjetivo que, em um império, sempre significa algo mais) e antepô-lo ao Enfield que já detinha.
Um empresário brasileiro com tradição na produção de motocicletas está intermediando a chegada da fábrica indiana que detém a sonora marca britânica. Os planos são ambiciosos: montagem em Manaus em planta própria e volume de produção capaz de conquistar toda a América Latina – a marca já está presente na Argentina.
A moto é uma graça, saída diretamente de algum lugar no passado. A versão Bullet Classic 500 que avaliamos em uma viagem de cerca de 160 km entre São Paulo e a estância climática de São Roque, no interior paulista, é maravilhosa, na cor vinho com detalhe creme no tanque. Por onde passa desperta sorrisos, suscita questões: uma simpatia. Uma moto grande, cara, moderna e extremamente tecnológica intimida um pouco o cidadão das ruas. A Bullet Classic não. Ela cativa, provoca o sorriso alheio, divide alegrias.
A sensação de pilotagem é extremamente curiosa. Primeiro, a posição. O tanque é lá embaixo, ela é reta, plana. Não há o conceito de cockpit, mas você a cavalga, como que montado em uma bicicleta. O guidão fica pertinho e os braços, flexionados. Quem tem boa postura, coluna ereta, vai adorar. É muito engraçado sentar em um banco com molejo, é impossível não se sentir como há um século. O selim, monoposto, é razoavelmente confortável para trajetos não muito longos, compatível com a ideia de uma moto para passear relaxadamente, sem pressa.
O tanque fica exatamente entre as pernas e os protetores plásticos mostram a que vieram, suportando a pressão dos joelhos. A tendência é andar com as pernas um pouco abertas demais. As pedaleiras, fixas no chassi, são largas e atrapalham um pouco as manobras com a moto parada, como dar ré, por exemplo.
Os comandos são convencionais e bem simples, um tanto rústicos. O importador promete mudar 42 itens, entre os quais o fundo dos mostradores de painel, para resgatar ainda mais, nos detalhes, o espírito de época.
O big single de 500 cc pega fácil, auxiliado pelo sistema de injeção eletrônica. Seu ritmo compassado é lento, bem lento. As respostas são deliciosas e a moto é ágil no trânsito urbano, leve e pequenina demais para uma “quinhentas”. O torque em baixa do cilindrão (máximo de 4,2 “quilos” a 4000 rpm) é delicioso, exigindo poucas trocas de marcha e saindo de rotações baixíssimas com elegância. Só não exija dele nenhum compromisso com médias e altas rotações. Ele “acaba” rapidamente e a pilotagem perde toda a graça.
O câmbio, de cinco marchas, é preciso, macio e muito bem escalonado, aproveitando a imensa disponibilidade de torque em baixas rotações e sua ausência em altas. Uma última marcha mais alongada para maiores velocidades na estrada poderia ser bem-vinda.
Na estrada, a estabilidade em curvas de baixa e média é puro deleite: a Bullet é durinha e traça bem percursos travados e sinuosos. Tudo vai bem até os 100 km/h. A partir daí surgem as limitações de um projeto dos anos 30: as vibrações tornam-se insustentáveis e a moto tende a oscilar na trajetória. Melhor não insistir e voltar ao ritmo dos velhos tempos.
A Royal Enfield Bullet Classic 500 é deliciosa para passeios de domingo à tarde, ou mesmo para trajetos eminentemente urbanos. Longas viagens não são sua praia nem sua proposta. A moto é extremamente simpática, charmosa e esbanja estilo. Certamente vai encontrar uma legião de admiradores de suas belíssimas linhas saudosistas. Royal Enfield Bullet Classic 500: logo mais na sua sala de estar.
TOCADA
Ágil, estável e com bons freios. Já era bom tocar esta moto há 60 anos. Boa na cidade e para passear, mas ruim na estrada.
★★★
DIA A DIA
Ideal: ninguém rouba, é econômica e ligeira, simples de operar. A proposta, entretanto, é colecionar e passear.
★★★★
ESTILO
Ela não só parece uma moto antiga: é efetivamente um projeto de 80 anos. Tem o charme das coisas de verdade, e estilo é seu maior trunfo.
★★★★★
MOTOR E TRANSMISSÃO
Um big single legítimo, thumper (com batidas fortes) de estirpe, o rei do torque em baixas rotações – e nada, nada em alta. O câmbio é durinho e bem firme.
★★★
SEGURANÇA
Os freios são bons, sem nenhuma tendência a travar. Nada excepcional, apenas eficientes.
★★★
MERCADO
Por enquanto, uma aventura na Índia: o preço de cerca de 17000 reais é atraente pelo estilo vintage, mas nossa bola de cristal anda meio enferrujada…
★★
VEREDICTO
Uma joia para aficionados e saudosistas, que também consegue ser prática e útil para uso diário. Simpatia é seu valor de troca.