Como a Lecar perdeu a oportunidade de não virar piada no Salão do Automóvel
Ao renovar prazos e apresentar terceiro modelo sem nunca ter feito um carro funcional, Lecar usa o Salão do Automóvel para amplificar dúvidas sobre sua operação
Faz mais de dois anos que a Lecar divulga sua proposta de criar um carro nacional eletrificado. Porém, está cada vez mais evidente que tudo o que a empresa apresenta ainda são conceitos pouco desenvolvidos – de empresa, de carro e de estratégia – e que não seguem um cronograma minimamente lógico para quem pretende ingressar na indústria automotiva.
Jornalistas e executivos que acompanharam a coletiva da marca no Salão do Automóvel ou ficaram constrangidos ou se sentiram desrespeitados com tamanho amadorismo da apresentação. Na plateia estava, inclusive, Tyler Li, presidente da BYD Brasil, que subiria o palco na sequência para lançar, com um discurso em português, a marca Denza no Brasil.
O problema não foi apenas o uso de imagens geradas por IA, mas falhas básicas como a falta de som e o nome do fundador, Flávio Figueiredo, exibido de forma incorreta nos telões.
Sem roteiro definido e com frases desconexas, o próprio Figueiredo tentou apresentar um terceiro modelo — ainda virtual — e exibiu uma gravação da maquete da futura fábrica, cuja conclusão está prevista apenas para o fim de 2027. Enquanto isso, um modelo de isopor e madeira da picape Campo, com rodinhas presas às rodas traseiras, permaneceu ao canto do palco. Meses antes, a promessa era exibir um protótipo funcional e que poderia ser dirigido no evento.
Cada “mockup” desse tipo é vendido por R$ 200.000 aos interessados em se tornar concessionários da Lecar. O valor supera o dos próprios carros oferecidos em pré-venda, anunciados por R$ 159.300 — na prática, 72 parcelas de R$ 2.212,50 no modelo de Compra Programada, já que não há opção de pagamento à vista. A promessa é entregar o carro quando metade das parcelas for paga, dentro de três anos. É aqui que o modelo de negócios passa a levantar dúvidas.
A Lecar afirmou, durante a coletiva, que terá 150 concessionárias no Brasil até 2026, um ano antes de sua fábrica ficar pronta. Embora o número impressione, a empresa pretende considerar lojas de usados e representantes — equivalentes a correspondentes bancários — como concessionários, terceirizando as oficinas. Os poucos carros vendidos na pré-venda só devem ser entregues em 2028.
Quando é questionada, a empresa afirma que seu modelo de negócios garante previsibilidade e permite ajustes à demanda. Mas uma fábrica de 90.000 m² e capacidade declarada para 120.000 carros por ano dificilmente seria rentável desse modo, já que manter unidades fabris ociosas também tem alto custo. O projeto da fábrica exibe outros números questionáveis, como um refeitório de 6.000 m² — equivalente a 12 estandes do Salão do Automóvel.
As promessas superlativas podem parecer críveis para incautos, mas beiram o irreal. A Gurgel, que produzia carros simples e reaproveitava componentes de outros fabricantes, fabricou cerca de 40.000 veículos ao longo de 25 anos. Sua fábrica, em Rio Claro (SP), tinha 15.000 m² de área construída.
Agora, a Lecar afirma que existe uma empresa chinesa interessada no projeto, empresa esta que supostamente uma startup até pouco tempo atrás. Porém, não revela nome nem detalhes. A marca já chegou a dizer que seu “carro nacional” poderia ser produzido na China, mas voltou e alegou, durante live para candidatos a concessionários, que estaria sendo supostamente prejudicada pela parceira — informação que carece de explicação mais clara.
Não seria um problema se a Lecar começasse a vender carros a partir de algum projeto abandonado por outro fabricante, chinês ou não. A própria Tesla começou a produção de automóveis assim: o primeiro Tesla Roadster usava chassi e carroceria da Lotus – e, mesmo assim, permaneceu na fase de protótipo funcional por anos.
Mesmo quando tiver um carro funcional, a Lecar ainda precisará lidar com homologações de componentes, eletrônica (promete até assistente ADAS de série), crash tests e emissões. Se são processos demorados e burocráticos até para grandes fabricantes, mesmo quando trata-se de carros importados, imagine para quem nunca faz um carro. Isso pressionará ainda mais os prazos da empresa, que possivelmente serão adiados novamente.
Restam muitas perguntas: como construir uma fábrica sem um projeto definido de chassi e carroceria, necessários para orientar a escolha do maquinário? Qual é o tamanho das prensas necessárias para estampar as peças do carro? Quais empresas conseguirão fornecer o maquinário em tempo hábil? Todo o maquinário será compatível entre si? Como sustentar uma rede de concessionárias sem carros para vender? Como vender em larga escala sem apresentar um protótipo realmente funcional após tanto tempo?
Essas respostas poderiam ter sido dadas agora, de forma profissional, condizente com a seriedade da indústria automotiva nacional, durante o Salão do Automóvel. Perderam a oportunidade.
Antes de esclarecer dúvidas que seu proprietário suscita em falas impensadas e nada planejadas nas redes sociais, a Lecar prefere aparecer. Seu estande no Salão do Automóvel é um pequeno campo de futebol mal iluminado com dois carros de isopor, um protótipo não funcional do chassi e duas dezenas de modelos vestidas com macacões de Lycra, numa estética ultrapassada. A publicação disso no Instagram tem comentários bloqueados e sabemos os motivos.
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A empresa que se apresenta como “fabricante brasileira de veículos híbridos e elétricos criada para revolucionar a mobilidade no Brasil” sem nunca ter fabricado um carro e diz ter “uma proposta inovadora” recorre a uma prática de 20 anos atrás.
Quando surgiu, no fim de 2023, a Lecar prometia um carro elétrico nacional, que seria fabricado em Caxias do Sul (RS) até o fim de 2024. Mas, em julho de 2024, o primeiro protótipo — o único com interior — foi abandonado, e a marca mudou o planejamento: agora, o carro seria híbrido, usaria motor flex para gerar energia ao elétrico de tração e adotaria design mais próximo ao de um cupê. O endereço da fábrica também mudou: de Caxias do Sul para Sooretama (ES). Na época, a inauguração era esperada para agosto de 2026. Agora, ao menos a cidade permanece a mesma, mas o início da construção foi remarcado para o primeiro trimestre de 2026, com conclusão no segundo semestre de 2027.
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