Recriações: a arte de cultuar antigos os mitos do automobilismo
Recriações de carros míticos e lendários são a solução para amantes de automóveis realizarem seus mais loucos sonhos

A licença poética é a liberdade que um artista tem para subverter as regras de fala e escrita. No mundo dos automóveis, esse termo pode ser empregado de diversas formas para expressar a paixão pelas máquinas como no caso das chamadas recriações, que, como o nome diz, recriam algum modelo raro ou icônico.
Ao contrário de outras vertentes que invocam o termo para construir automóveis inimagináveis (como é o caso do restomod, que utiliza carrocerias de automóveis clássicos aliadas a mecânicas modernas), as recriações não possuem um manual com regras exatas, apenas seguem o desejo pessoal do construtor de possuir determinado modelo de automóvel extremamente específico e beirando o impossível de se adquirir um original, por diferentes razões.
Diferentemente das réplicas, as recriações geralmente são únicas, feitas à mão pelo proprietário que sonha com determinado carro, como foi o caso do empresário Carlinhos Kalú, de 41 anos, que desde criança aspirava ter um esportivo que estava na capa de um videogame.

LANCIA DELTA INTEGRALE
“O Lancia Delta HF Integrale ilustrava a capa do jogo Sega Rali de 1995 e desde essa época sou apaixonado pelo modelo”, diz o empresário. Em 2018, Carlinhos encontrou uma unidade do Lancia Delta à venda em um site de leilões dos Estados Unidos e, com um lance faltando uma hora para o fim do pregão, arrematou o modelo, que ficou nos EUA até 2022, quando pôde ser importado para o Brasil. Durante esse período, Carlinhos foi comprando os acessórios necessários para transformar o Lancia Delta HF Integrale 1992 de rua em um exemplar de Rali. Rodas Rotiform, o podlight dianteiro e um volante de corrida “Martini Racing” da Sparco foram os acessórios instalados.
Pesquisando imagens de corridas de rali dos anos 1980, o empresário conseguiu reproduzir todos os adesivos utilizados na época a fim de recriar fielmente o carro que entrou para a história das competições como uma lenda.



O Lancia de Carlinhos só não é idêntico ao original porque lhe faltam diversos componentes que um carro homologado para as provas de rali é obrigado a ter. Mas a essência está ali: o carro é o mesmo, uma vez que, pelo regulamento da categoria, os protótipos das pistas precisam ter uma quantidade mínima de unidades iguais à venda nas concessionárias.

LOTUS 7
O empresário e jornalista Cacá Clauset, 55 anos, sempre foi um apaixonado por velocidade e realizou o sonho de construir um exemplar do famoso esportivo inglês Lotus 7. O projeto desenvolvido nos anos 1950 pelo lendário construtor da F1 – o britânico Colin Chapman – nasceu com a proposta de popularizar carros de corrida para amadores, entusiastas também conhecidos como “gentleman drivers”.

Desde seu lançamento, o Lotus 7 foi oferecido pronto ou em kits, para que o comprador pudesse montar o veículo em sua garagem, se assim quisesse, a um custo ainda mais baixo que o do carro montado.




Cacá fez o dele inteiramente no Brasil, desde o chassi tubular, carroceria de fibra de vidro e mecânica que utiliza um motor 2.0 16v que equipou o Chevrolet Vectra, com câmbio de cinco marchas do Omega. Baixo peso, tração traseira e motor central dianteiro de 180 cv parecem a receita perfeita para quem quer se divertir.
PORSCHE RSR KREMER-VAILLANT
Daniel Galante, executivo de tecnologia de 45 anos, sintetizou sua paixão por Porsche em uma recriação de um dos modelos mais celebrados da marca, o 911 RSR de 1975. Foram apenas 52 unidades produzidas naquele ano do modelo que atendia os requisitos do Grupo 5 da FIA, para carros de turismo, com motor de 3 litros e apenas 900 kg de peso.


Esse não foi um modelo vencedor em sua época, mas a unidade da equipe alemã Kremer com os emblemas da empresa de aquecedores Vaillant, pilotada pelo lendário piloto Bob Wollek, marcou uma geração de entusiastas.
“Quando criança, admirava tanto a caixa do automodelo de controle remoto da Tamiya em escala 1/12 do 911 Kremer-Vaillant que nunca mais me esqueci”, diz Daniel.

A recriação do RSR precisou de sete anos para ficar pronta: começou em 2017 e terminou em 2024. A base foi cedida por um Porsche 911 SC de 1979. Mas apenas isso, já que todas as partes do veículo foram trocadas por novas (de época), respeitando toda a literatura que Daniel encontrou do modelo a ser recriado. Por consideração e respeito ao projeto original, Daniel diz que pediu autorização para a Kremer e para a Vaillant durante o processo.
O resultado é um veículo que impressiona na perfeição, qualidade e fidelidade ao modelo original, possuindo todas as especificações, acabamentos e performance do original.

“Uma das escolhas de Sophia foi abrir mão dos 900 kg do peso total para possuir um roll cage mais seguro, elevando o peso total para 1.080 kg”, conta o recriador, que fez atualizações mínimas, uma vez que partiu da base de um carro de rua, e queria ter durabilidade e segurança para utilizá-lo (sem moderação), mas sempre sem comprometer a alma do RSR Recreation. “A jornada na construção de uma recriação requer paciência e paixão, mas é um processo muito recompensador”, conta Daniel, que já tem um próximo projeto de recriação (ainda mantido em segredo) pronto para iniciar.
JAGUAR C TYPE
Recriações têm adeptos em todo o mundo. E uma das quatro reunidas nesta reportagem veio importada da Inglaterra para o Brasil reproduzindo um dos esportivos mais raros e belos já produzidos da história da Jaguar, o C Type.

O C Type original, também conhecido como XK-120 C, teve apenas 53 unidades fabricadas entre 1951 e 1953. Segundo o dono, que prefere não ser identificado, em 2000, um artesão inglês recriou o modelo usando 100% dos componentes e materiais utilizados no original: chassi do XK120 de alumínio, motor seis-cilindros em linha de 4,2 litros, carroceria feita à mão de alumínio, instrumentação Smith, suspensão com amortecedores duplos na traseira.

Houve duas modificações: o câmbio veio do Jaguar de cinco marchas e não do de quatro marchas com configuração dogleg (1a marcha para trás) utilizado no original e a carburação com três Weber 44, no lugar do de três Weber 40 (houve versões com dois carburadores e também com carburadores da marca SU). Em sua documentação consta como Jaguar 1953 XK, justamente por ter um chassi original Jaguar, o mesmo utilizado no C (C de competition). O carro é tão fiel ao original que apenas os mais conhecedores e estudiosos irão entender que se trata de uma recriação.


Outros que talvez duvidem sejam os que saibam o valor de um modelo desses original, um Jaguar C Type em estado de coleção chega a custar R$ 120 milhões nos leilões internacionais. A recriação vale apenas 1% disso: a unidade da foto está à venda, em São Paulo, por R$ 1.200.000. É o preço de um esportivo zero-km, como um Porsche 911 Carrera 4 GTS, mais precisamente, R$ 1.095.000, na tabela da fábrica.
As recriações seguem os originais não só no estilo e no desempenho, mas também quando se trata de calcular os custos ou o valor que representam para os entusiastas.