O que é micromobilidade e por que ela não funciona no Brasil
Especialistas criticam conceito de mobilidade com patinetes elétricos e alegam que problema não está na infraestrutura do país
O termo micromobilidade surgiu em há menos de três anos, quando o analista de tecnologia Horace Dediu utilizou a palavra durante o Tech Festival de Copenhagen, na Dinamarca, para se referir aos meios de transporte com menos de 500 kg e motorização elétrica.
E se você juntou essas características, notou que os patinetes compartilhados – oferecidos aqui desde 2019 – se encaixam perfeitamente à descrição. Mas até que ponto esse conceito é benéfico às cidades?
“Patinetes e bicicletas motorizadas são motos disfarçadas. E esse é um problema que existe no mundo inteiro, pois causam insegurança às demais pessoas por alcançarem altas velocidades com facilidade. Ainda há o problema na formação dos condutores, que muitas vezes não têm o comportamento civilizado e isso gera risco a todos”, explica Alexandre Delijaicov, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e arquiteto da prefeitura de São Paulo.
Ainda não existe uma regulamentação nacional para os veículos “autopropelidos”, como são tratados pelo Código de Trânsito Brasileiro. Por isso, se aplica apenas a regra de velocidade: até 6 km/h em áreas de circulação de pedestres e 20 km/h em ciclovias ou ciclofaixas.
Mas a capital paulista também proibiu o uso nas calçadas, enquanto o Rio de Janeiro definiu que só estão permitidos usuários acima dos 18 anos, além do limite de velocidade para iniciantes.
“Hoje, temos negligência para formação de ciclistas e até para veículos motorizados maiores. Infelizmente, está muito distante a exigência para os condutores desses veículos elétricos de pequeno porte”, diz Eduardo Biavati, sociólogo consultor da Global Road Safety Partnership, divisão da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho para a segurança no trânsito.
Vale lembrar que até ciclomotores, que têm motor de 50 cm³ e chegam a 50 km/h, exigem autorização.
Recentemente, a alemã Dekra apresentou um novo Padrão de Micromobilidade, que prevê testes para mais de 120 itens em oito diferentes áreas: projeto técnico; produção, transporte e montagem o veículo; autoridades, seguros e infraestrutura; segurança de TI e proteção de dados; treinamento e comportamento do usuário; uso e aplicação do veículo; manutenção e armazenamento; e reciclagem. O serviço será fornecido às empresas de aluguel a às cidades.
Segundo a companhia, que é especializada em certificações, foram registrados 125 acidentes em São Paulo de janeiro a maio de 2019 – quando ainda não havia regulamentação do uso.
“Do ponto de vista da infraestrutura, não há nenhum impeditivo para a micromobilidade nas cidades brasileiras. É mais uma questão de ética na formação dos condutores. As pessoas têm que se colocar no papel das outras e respeitar os mais frágeis no trânsito”, reforça Delijaicov.
“Infelizmente, as medidas tomadas por São Paulo, Rio de Janeiro e por outros grandes centros foram pensadas no calor da situação. Não houve um planejamento ou uma discussão, mesmo porque o poder público foi atropelado pela chegada desses novos modais. E o principal ponto que a regulamentação não consegue é o respeito no compartilhamento do espaço público”, conta José Aurelio Ramalho, diretor-presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária.
Em janeiro, a norte-americana Lime, operadora de patinetes elétricos para compartilhamento, anunciou a saída do Brasil após seis meses aqui. No mesmo mês, a Grow – companhia criada após a junção de Yellow e Grin – reduziu as operações no país e saiu de 14 cidades.
“Muitas empresas chegaram e já estão indo embora. E não é por legislação ou regulamentação, mas sim pelo nosso hábito equivocado no uso desse tipo de equipamento”, afirma Ramalho.
Por outro lado, a Uber passou a oferecer patinetes elétricos em São Paulo – cidade com maior número de corridas da empresa no mundo – em março.
“Planejamos a operação para que os patinetes sejam uma opção para aqueles deslocamentos mais curtos, de forma a incentivar que os veículos elétricos sejam usados para complementar o transporte público e driblar o trânsito”, diz Ruddy Wang, diretor da divisão de novas modalidades da Uber para América Latina.
Para tentar contornar os problemas de segurança apontados por especialistas e má-utilização dos equipamentos, a companhia fornecerá aos usuários materiais educativos no site oficial, no aplicativo, em cartões fixados nos próprios patinetes, além de distribuir folhetos em eventos e campanhas de conscientização.
A Uber também firmou uma parceria com a rede de lojas de materiais esportivos Centauro para disponibilizar capacetes com descontos de até 40%.
“A ideia de micromobilidade é real apenas para cidades que permitem deslocamentos em até 30 minutos e quando é parte do sistema de transporte público. Pensando como saúde pública, é indicado caminhar parte do trajeto para realizar exercício físico. Não faz sentido o conceito baseado em veículos que tenham autopropulsão”, reflete Alexandre Delijaicov, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e arquiteto da prefeitura de São Paulo.
“Atualmente, 60% dos deslocamentos feitos em São Paulo são entre 2 km e 5km. Ou seja, a maioria dos trajetos poderia ser realizado de bicicleta. Nossas estações estão distribuídas em pontos de grande demanda, como terminais de ônibus e próximos as estações de metrô, para facilitar a intermodalidade. Por exemplo, quem mora no bairro periférico, mas trabalha na região central, pega o metrô e depois a bicicleta”, explica Tomás Martins, CEO da Tembici.
De acordo com a prefeitura da capital paulista, a malha cicloviária é de 503 km atualmente, mas a promessa é de que seja ampliada a 676 km até o fim de 2020.
A Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes afirma que, desde que ciclovias e ciclofaixas foram implementadas na cidade, o número de óbitos envolvendo ciclistas reduziu 63% – vale lembrar que o trânsito paulistano teve 849 vítimas fatais ao longo de 2018, segundo dados divulgados pelo governo.
“Ainda há uma questão fundamental à qual deveríamos nos atentar e que muitas vezes passa despercebida nas discussões de novos meios de deslocamento, que diz respeito à inexistência ou à péssima qualidade das calçadas”, diz Eduardo Biavati, sociólogo consultor da Global Road Safety Partnership, divisão da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho para a segurança no trânsito. E, segundo Alexandre Delijaicov, 38% dos deslocamentos são feitos por pedestres.
“Desde a Copa do Mundo de 2014, mobilidade finalmente se tornou um tema de discussão no Brasil. E isso é fundamental para o convívio em sociedade. Só que, desde então, após mais de seis anos, tivemos mais avanços em relação à visibilidade desse tema que na efetiva solução de problemas que vêm de longa data e exigem mudanças profundas. No fim, melhorou para quem tem privilégios em vez de promover uma mobilidade mais justa de fato” finaliza Biavati.