Querido Marinho, é assustador ver os netos crescerem e meus companheiros partirem. Por isso a dor de saber que no último dia 3 de janeiro o grande piloto e meu amigo Mário César de Camargo Filho faleceu, aos 82 anos.
Você indo embora foi um murro na boca do estômago. É fácil de explicar, pois nós dois estávamos juntos no primeiro ato da história do automóvel e do automobilismo brasileiro, lá no fim dos anos 50.
Fabricante dos confiáveis DKW, a Vemag elegeu as pistas como a vitrine para promover e desenvolver seus automóveis com motor dois tempos.
Foi por isso que ela resolveu montar em 1960 o primeiro departamento de competição oficial de fábrica no Brasil.
O competente Jorge Lettry foi nomeado o chefe de equipe e nos convidou para sermos os dois primeiros pilotos de fábrica. Que época boa…
O grupo era muito competente e os resultados vieram logo. Colecionamos muitas vitórias e fizemos daquele sedã com seu pequeno motor 1.0 de três cilindros ser um dos melhores veículos de competição no Brasil da época. Puxa, cara, que saudades!
Conviver com você e o Jorge não era fácil. Dizem que todo gênio é meio maluco e eu fui cair nesse vespeiro. O Jorge era perfeccionista e exigente (daí seu apelido Tenente) e vocês se adoravam, mas quebravam o pau dia e noite.
E também eram geniais. Nunca vou me esquecer de quando, para ocultar as informações dos adversários, ele fez com que nós e os cronometristas memorizássemos os números em japonês para usar nas placas dos boxes, para a gente entender. Inacreditável, mas é verdade.
Nas provas de longa duração eu e você fazíamos a dupla. Aí era fácil pra mim, pois eu tinha o grande Marinho do meu lado, com sua pilotagem agressiva mas ao mesmo tempo precisa.
E nosso carro era sempre o melhor, porém nas outras provas sobrava só encrenca. Você não dividia nada, queria tudo para si.
Em 1961, conseguimos tirar quase 110 cv daquele minúsculo motor, que equiparia daí para a frente os DKWs, Malzonis e Carcará.
Foi dessa experiência que nasceu a Lumimari, empresa que você ajudou a fundar e que daria origem à Puma Veículos e Motores em 1966.
Nesse mesmo ano de 1961, dez dias antes das Mil Milhas Brasileiras, a levíssima, rebaixada e superpreparada carreteira DKW bateu extraoficialmente o recorde dos Corvettes. Foi um dia especial. Ficamos todos emocionados, foi uma choradeira.
O carro era muito bonito, com cara de bravo, acentuado pelo teto rebaixado. O peso era reduzido, com apliques uso de alumínio e acrílico na carroceria, e os tanques ficavam dentro do carro para ajudar na distribuição do peso.
Por baixo colocaram até uma chapa metálica para reduzir o atrito do ar. Nosso DKW andava tanto que tínhamos que aliviar o pé antes do fim da reta para o motor não explodir – estávamos a incríveis 200 km/h.
E alguns anos depois, no último ato do departamento de competição da Vemag, esse mesmo motor aspirado de 1 litro que faria o Carcará conquistar o recorde brasileiro de velocidade, com 214 km/h na melhor passagem na rodovia Rio-Santos, em 1967.
A tua participação e influência eram muito grandes.
Quase todos os avanços mecânica da equipe eram engenhocas que saíam do seu automóvel de passeio aproveitadas no carro de corrida, que era reconhecido por todos por causa do número 10 branco dentro de um círculo preto.
O Jorge ficava enciumado, mas também era o maior beneficiado.
Lembra do famoso preparador, nosso dileto amigo Sérgio Cabeleira? Daquela subida no bairro Pinheiros, em São Paulo, onde vocês testavam os carros e chamavam de dinamômetro?
Do óleo de câmbio que lubrificava tanto que os sincronizadores das marchas não funcionavam mais?
Daquela viagem noturna para uma corrida no Rio de Janeiro quando saíam tantas faíscas do seu escapamento que parecia mais um rojão de festas juninas? E aí eu chiei… “O que você aprontou, Caipira? Este carro vai pegar fogo!”. E você ria.
Aguentar você e o Jorge não foi fácil, mas não poderia ter sido melhor. Acho que cada um se tornou o reflexo do outro. Salvo raras exceções, nós éramos os únicos naquela época que guiávamos de graça. E todos queriam nosso lugar.
Tínhamos até um carro da frota da fábrica para nosso uso particular, um DKW preparado, equipado com motor 1000S, mais potente. Era um troféu ambulante. Nós nos orgulhávamos dele. Que saudades…
Querido amigo, aprendi quase tudo com você, mas faltou você me ensinar os segredos dos circuitos de rua, tão comuns nos anos 50 e que chegavam a reunir 100.000 pessoas ao longo do percurso.
Quantos eixos e rodas tortas destruí nas guias, pois nunca aceitei ver você me escapar?
Depois de tudo que nós fizemos e vivemos, é uma tristeza constatar que a tecnologia invadiu os cockpits atuais. Hoje os carros de corrida parece que andam sobre trilhos e, quando descarrilham, não tem o que fazer.
Só recomenda-se que o piloto tire a mão do volante para não quebrar o braço. No mundo moderno, quem não souber operar equipamentos está aleijado.
Os pilotos modernos fazem um trabalho totalmente diferente do nosso, mas ainda fazem a diferença.
Nossos carros eram bons de guiar, o volante era limpo, não pareciam um teclado de computador. Tínhamos só uma alavanca de câmbio e os três pedais convencionais.
Na hora da largada, com o controle combinado entre acelerador e embreagem, colocávamos toda a cavalaria do motor no asfalto.
Hoje é tudo eletrônico, o piloto aperta ou solta um botão e os jornalistas tapam esta lacuna discutindo quem larga melhor.
É lógico que os pilotos modernos têm seus méritos, mas qual é o talento necessário para apertar ou soltar um botão? O mecânico precisa ser um engenheiro e o piloto superdotado física e mentalmente.
Marinho, nós não somos uma raça em extinção, somos uma raça extinta. Mas o nosso trabalho fez com que história dos primórdios do automobilismo brasileiro jamais seja esquecida.
Companheiro de trincheira, irmão para sempre.
Bird Clemente
82 anos, foi piloto da equipe DKW-Vemag e o primeiro piloto profissional remunerado do Brasil, na equipe Willys, em 1963. É palestrante e autor do livro Entre Ases e Reis de Interlagos (2008).