O dia em que fui ‘estagiário’ da equipe Peugeot nas 6 Horas de São Paulo
Equipe Peugeot TotalEnergies tem dois Hypercars no grid e equipe de 60 pessoas nesta etapa da WEC, mas tentei uma vaga para ser o 61° integrante

Eu nunca fui estagiário. Até agora. Cheguei na equipe Peugeot TotalEnergies apenas com boa vontade e disposição para aprender, durante os preparativos das 6 Horas de São Paulo, que acontece no próximo domingo (13). O trabalho de uma equipe que compete no Mundial de Endurance (WEC), porém, exige preparo físico, diversas habilidades e, principalmente, a confiança no trabalho de cada um.
A equipe Peugeot veio para o Brasil com 60 pessoas (em LeMans, chega a ser 100 pessoas), acompanhados de containers com todas as peças de reposição, equipamentos, uniformes, comida, computadores e, claro, os carros. Então minha oportunidade de colocar a mão na massa seria lidando com os pneus.

Isso não aconteceria, porém, sem antes passar por um “aquecimento”: fazer o track walk, a caminhada dos pilotos e equipes pela pista para reconhecer o traçado, o asfalto e pontos de atenção. Para os quatro pilotos, era claramente um momento para se concentrarem no traçado e trocar experiência – o dinamarquês Malthe Jakobsen, de 21 anos, estava pisando no asfalto sagrado pela primeira vez.
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Sagrado para alguns, objeto de análise para outros. Membros de outras equipes caminhavam com equipamentos para analisar as características do asfalto de Interlagos, recém recapeado e com cortes para escoamento de água, para conseguirem calcular a durabilidade de cada jogo de pneus e planejar a estratégia – na corrida de seis horas, podem ser necessárias até cinco trocas de pneus.
O time Peugeot observava com atenção as zebras, os ralos adjacentes e os desníveis nas laterais.

Durante a caminhada de 4.309 m por todo o traçado de Interlagos, Mathieu Neuville, engenheiro chefe de um dos carros da Peugeot, me conta que nem sempre os pilotos querem fazer o track walk, mas eles sempre fazem. Mensagem compreendida. Mas ele mesmo confidenciou que já havia sido pego de surpresa, no ano passado, pelas variações de altitude do traçado. Os carros se esforçam em Interlagos e nós também!

Neuville conta que Interlagos é uma etapa interessante por ter um traçado menor, com curvas e topografia incomuns em outras pistas, mas estreito para os Hypercars, os protótipos que dividem o asfalto com os carros GT3 (mais próximos dos esportivos de rua e, em média, 10 s mais lentos no tempo de volta). Aqui no Brasil, os Peugeot 9X8 precisam de pequenas otimizações aerodinâmicas e nos motores.
O Peugeot 9X8 usa motor V6 2.6 biturbo de 680 cv feito sob medida – mas o bloco deriva do V12 do antigo 908 HDi (a diesel) – é conectado a um câmbio de sete marchas. O motor elétrico dianteiro tem 272 cv e é alimentado pela energia armazenada em uma bateria de 900V da TotalEnergies. Por conta da medida dos pneus, o motor elétrico só entra em ação acima dos 150 km/h.

De acordo o engenheiro, o motor dianteiro é providencial para tomar as curvas da subida do lago e ferradura rápido. O regulamento determina que o carro tenha potência máxima de 680 cv, então quanto o motor elétrico está em uso a potência dele é automaticamente descontada do rendimento do motor a gasolina. O combustível, aliás, é testado em um equipamento próprio dentro do box da equipe.
Tudo perfeitamente ensaiado

De volta aos boxes, os pilotos vestiriam seus macacões e sapatilhas para ensaiar a troca de comando dos seus carros. Os carros precisam resistir até o final da prova, mas os pilotos podem revezar a direção. Isso precisa ser rápido, durante um reabastecimento e é muito mais complexo do que pode parecer. A mim, coube ficar à espreita e ver o procedimento.
O piloto puxa uma fita e a porta, de fibra de carbono (é o material de 95% da carroceria) e com o tamanho de uma janela, se abre na diagonal. Ele precisa se soltar e sair rapidamente trazendo consigo o seu assento. O próximo piloto finca seu assento no carro e se acomoda, enquanto um membro da equipe se debruça para prendê-lo ao carro e tão logo termina, empurra seu corpo para trás para desencostar do carro. A pessoa que faz isso é sempre a menor e mais leve entre os mecânicos.

Esse passo a passo dura menos de 30 segundos e a muito poucos centímetros outro membro da equipe abastece o carro, contando que ninguém esbarrará nele. Quando se trata de uma atividade oficial, os responsáveis pelo reabastecimento são identificados pelos capacetes verdes – isso, no caso da Peugeot, mas a distinção é comum. Antes de reabastecer, um mecânico aterra o carro por meio de uma garra presa à roda – que depois é puxada rapidamente.
Na sequência, há o treinamento da troca de pneus. Por um lado, ajuda o fato do próprio carro ter braços pneumáticos que erguem ele automaticamente, assim que conectam uma mangueira de ar comprimido ao carro. Por outro lado, duas equipes trocam os quatro pneus.

No caso da roda traseira esquerda, a mesma pessoa responsável por conectar o ar comprimido precisa levar o novo pneu à posição para que o colega fixe-o – mas ele estará retirando o pneu usado antes mesmo do carro subir por completo. Depois, os dois ainda correm para o outro lado. Quando eles retornam, um bate em um botão ao lado do sistema de reabastecimento e a mangueira de ar é cuspida pelo carro com a própria pressão do ar. Daí vem a importância de tudo ser tão bem ensaiado.

Tudo acontece tão rápido que faz parecer muito fácil. Não é: só o conjunto de roda e pneu pesa 23 kg e não há tempo (nem coluna lombar) que tolere que seja carregado do jeito errado ou arrastado. Carregam e posicionam o pneu como se fosse uma caixa de papelão vazia.
A pistola pneumática também engana. Mesmo com partes de fibra de carbono e um soquete de titânio, ainda pesa seus 9 kg. Esta seria minha ferramenta de trabalho nos próximos instantes.

Na hora de sacar a única porca que prende a roda ao carro, o mecânico Mael Le Foll me avisa sobre o tranco da ferramenta, que faz uma alavanca contra o seu braço. Então é importante manter o braço firme, a ferramenta a 90° e confiar. Aperto o gatilho e tudo já aconteceu: a ferramenta é tão rápida que não dá tempo de conferir se a porca saiu – ela terá saído…
Para apertar, é preciso mudar a rotação da pistola com um golpe no comando e chegar reto na ponta do semi-eixo. Consegui executar o serviço, mas eu claramente precisaria treinar mais vezes. Até o barulho da pistola funcionando foi diferente no meu uso.

Os pneus estavam me perseguindo. Eu terminaria meu dia aprendendo os preparativos finais para os pneus que seriam usado na pista, após a montagem e o balanceamento – o que é feito em outra área do autódromo, próxima aos conteiners. Separaram dois jogos completos de pneus para pista molhada, três jogos de pneus médios e mais três jogos de pneus duros.

Busquei um pneu para iniciar os trabalhos. A primeira missão é colar uma fita de alumínio sobre os pesos de balanceamento. Não é normal que esses pesos se soltem, mas essa fita evita o risco com o calor e toda a velocidade a qual eles são submetidos, para que não fiquem pela pista.

Para não ter problema com a confidencialidade, depois definiram níveis de pressão empíricos: eu deveria encher o pneu até 2 bar (29 psi), esvaziar novamente, encher até 1,5 bar (22 psi) e rapidamente apertar a válvula com uma chave que também é um torquímetro – deveria parar no segundo clique.
Encher pneu é fácil, basta estar atento ao manômetro. O processo de tirar a mangueira de ar e colocar a válvula, porém, exigiria mais prática minha para ficar bom e chegar à coordenação certa, porque a ferramenta não é magnética e o ar acaba jogando a válvula longe. Descobrir que existe torque até para a válvula do pneu me surpreendeu.

Ainda precisaria adicionar adesivos em dois raios das rodas que sinalizam não só a posição da válvula como também sua utilização: pneus com adesivos brancos vão atrás e aqueles com adesivos amarelos são montados na frente. Isso sim me preocupou: não consegui desenvolver essa habilidade com brinquedos do Kinder Ovo, álbuns de figurinha ou kits de Lego. Quase reproduzi o S do Senna em um dos raios.
Por fim, era preciso configurar o sensor de monitoramento e pressão do pneu (TPMS). É simples: foi só aproximar um aparelho muito parecido com um scanner automotivo da região do bico do pneu, conferir se o código do sensor é o mesmo número de série da roda (fornecida pela OZ) e, então, configurar o tipo do pneu montado nela. Neste caso, foi só mudar do pneu “medium”, que estava montado nesta roda antes, para “wet” e salvar. Esse mesmo aparelho capta os sinais dos sensores de pressão e temperatura e permite a verificação independente de cada pneu.

“Box, box, box!”
Esse foi apenas o primeiro dia. Me convocaram no dia seguinte para acompanhar o segundo treino livre dentro do box e com liberdade total para circular por ali.

É um momento de atenção total. A ordem vem do outro lado da pit lane, onde o chefe da equipe, Marco Pastorino, e os engenheiros chefes dos carros, Ruggero Apriletti e Mathieu Neuville, acompanham a telemetria enquanto conversam com os pilotos. Então os carros são levados para fora do box, passam por uma rápida conferência e aguardam o início da sessão de 1h20 de treinos.
A comunicação com os pilotos é aberta para o rádio da equipe, que sabe exatamente o que fazer em cada situação. Essa movimentação acontece de forma praticamente automática. Ver isso acontecendo sem ouvir do que se trata é até um pouco estranho, pois todos agem ao mesmo tempo. Entendi isso assim que recebi meu rádio, quando me senti parte da equipe.
O que é falado no rádio é sigiloso, mas é a comunicação natural entre pilotos e equipe sobre comportamento, ritmo do carro, trânsito na pista e definição das configurações de motor e aerodinâmica – que foi otimizada ao longo do treino com troca de partes do carro ou ajustes diferentes e até mesmo com o retorno de um dos carros ao box para melhorias mais específicas.

–O treino também contempla a troca de pilotos, o reabastecimento e a troca de pneus. As diferenças para as simulações estão no fato de todos estarem de macacão e capacete, e que o responsável por sinalizar a posição de parada no box precisa estar atento ao tráfego dos boxes vizinhos. Tudo, porém, acontece conforme os ensaios. O que acontece é que mais pessoas podem ir ao carro fazer inspeções ou mesmo a limpeza do para-brisa.
Os Peugeot 9X8 ficaram com tempos de volta no início da segunda metade do pelotão dos Hypercars, mas foram os carros mais rápidos do dia na terceira seção de Interlagos. A equipe tem suas preocupações com este fim de semana, mas a minha é com a mudança de tempo nas 6 horas de corrida. Se tiver algum problema com os pneus para o asfalto molhado, existe o risco de a culpa ser, sim, do estagiário.