Em 1950, a baía de Monterey (190 km a sul de São Francisco) começou a promover eventos em que o automóvel era a grande estrela. Primeiro com corridas nas vias públicas, modelos novos em exposição e alguns clássicos, como confirma Sandra Button, a presidente do Concurso de Elegância de Pebble Beach: “o Concurso era apenas um evento de apoio às corridas que chamavam mais público”. Normal, pois nos anos 50 o automóvel tinha poucas décadas de vida e era acessível a minorias.
Foi no final dos anos 80 que começaram a usar uma área do campo de golfe de Pebble Beach, um dos mais exclusivos do mundo, situado sobre o oceano Pacífico numa zona especialmente rica da costa californiana. Na vizinhança, o valor das mansões variam entre 8 e 50 milhões de dólares. O evento cresceu, passou a contar com diversos eventos paralelos e hoje é palco da apresentação de carros novos em número tão significativo quanto o de alguns Salões do Automóvel pelo mundo.
Museu a céu aberto
Neste ano, o calendário oficial da 71ª edição da Monterey Car Week começou em 17 de agosto com a longa viagem Pebble Beach Motoring, que leva uma caravana de preciosidades a cobrir uma distância de cerca de 1.600 km ao longo da costa do Pacífico entre Seattle e Monterey, algumas das quais até vão participar no evento principal do programa, que é o Concurso de domingo.
Quem não tem tanto tempo ou carece de vontade para passar tantas horas dentro de carros quase sempre desconfortáveis de suspensão, bancos e sem ar-condicionado e outros mimos modernos – a mim, carros clássicos são melhores para admirar do que para experienciar – pode participar da Tour d´Elegance, logo na quinta-feira, que liga Pebble Beach à zona costeira conhecida como Big Sur.
Passam pela pitoresca vila de Carmel-by-the-sea e volta a Pebble Beach pela costa. Cerca de ¾ dos grandes destaques do evento participam do passeio, um deleite para as multidões que se instalam em cadeiras de camping à beira da estrada apenas para admirar as joias em movimento.
Rob Kaufmann, que já participou na Tour meia dúzia de vezes com diferentes modelos, tem uma motivação mais altruísta: “não entro no Tour para ganhar nada, mas sim para partilhar a beleza do movimento destes carros maravilhosos com pessoas que, na grande parte dos casos, não vão poder estar no Concurso no domingo”.
“Quem dá mais?”
No meio da semana começam os vários leilões, sempre de empresas de renome como Gooding & Company, Bonhams e Sothebys. É assim há quase 30 anos e estão entre os mais famosos do mundo, com direito a recordes como o de uma Ferrari 250 GTO leiloada por 41,6 milhões de dólares pela Sotheby’s em 2018. Em 2022, porém, o recorde veio da soma de todos os carros vendidos: os 469 milhões de dólares superaram os 395 milhões, fixado em 2015. De 956 carros disponíveis, venderam 790.
O mais caro foi negociado pela Sotheby´s, uma Ferrari 410 Sport Spider de 1955, por 22,005 milhões de dólares – ainda assim abaixo do seu valor estimado, entre os 25 e os 30 milhões. A Gooding vendeu um um Bugatti Type 57 Atalante de 1937 por 10,345 milhões de dólares.
Nos vários eventos há também tendas carregadas de automobilia, quadros (alguns dos quais pintados ao vivo, diante dos carros, tanto no Quail como no Concurso), esculturas e outros objetos que fazem as delícias dos colecionadores.
Um salão do automóvel gourmet?
Na sexta-feira aconteceu, então, a 19ª edição do “Quail”, uma exposição de carros que vem se mostrando algo como um sucessor para os salões do automóvel, cada vez mais próximos da extinção. Cada um dos 3500 visitantes (a lotação é limitada) paga 1.500 dólares (ainda assim, menos do que os bilhetes mais caros do concurso de domingo, que chegam aos 3.000 dólares) apenas para passear (ou desfilar) num relvado artificial muito bem tratado onde estão muitos automóveis clássicos, mas cada vez mais lançamentos.
Claro, quase sempre são carros que exigem dezenas ou mesmo centenas de milhares de dólares para levar para casa ou carros-conceito inéditos, sem um local digno para serem mostrados. É um salão do automóvel para ricos, e quem quiser ver um carro mais mundano que vá à concessionária.
Público de pessoas públicas
Além dos carros e dos visitantes mais ou menos excêntricos, neste ano também deu para ver pelo canto do olho Mary Barra, Presidente da General Motors, sob os seus óculos escuros, chapéu e elegante a tentar passar incógnita na zona do catering. Ou descobrir o surfista convertido em designer Franz von Holzhausen, responsável pelo estilo na Tesla, admirando um clássico que gostaria de ter desenhado.
Mais que isso: provocar um encontrão suave e dissimuladamente involuntário com Adrian Hallmark (CEO da Bentley) enquanto admirava uma das relíquias da Bentley que fez furor em Le Mans: “o seu próximo carro de serviço?” atiro, à falta de melhor inspiração, para uma resposta bem disposta: “nem nos meus sonhos mais ousados”. Este tipo de encontros com CEOs, designers ou até pilotos acontece com bastante frequência ao longo de todo o Monterey Car Week.
Muitos deles são jurados honorários do Concurso. E nota-se que estão sempre muito descontraídos, ao ponto de reconhecerem e se darem ao trabalho de trocar algumas impressões com um jornalista com quem conversaram algumas vezes na vida.
Alguns encontros são mais fortuitos, outros menos, como o que tive com o “sr. Le Mans” no dia seguinte, no circuito de Laguna Seca: “sim, é verdade, há uns 20 anos fizemos juntos uma viagem de Sevilha a Monte-Carlo numa pequena caravana de Bentley Continental GT”, me diz Tom Christensen, recordista absoluto de vitórias nas 24 Horas de Le Mans (nada menos que nove, entre 1997 e 2013, além de dois segundos lugares e dois terceiros, num total de nove pódios).
É uma honra claro (e foram, exatamente, 20 anos), daquelas que insuflam o ego mesmo antes de sair para duas voltas em Laguna Seca ao volante de um Audi e-Tron GT. E só foi possível não perder o contato com Christensen, pois o dinamarquês não passou dos 60% do seu potencial.
No final da experiência, saio do e-Tron e quase sou abalroado por Henri Pescarolo, que caminha em passo quase tão acelerado quanto o que usou nas últimas das 33 edições de Le Mans nas quais correu (o que o torna o recordista de participações). Isto porque uma das iniciativas aqui na Motorsport Reunion (é como se chama o evento de Laguna Seca integrado no programa) foi a de promover uma largada “à Le Mans”, ou seja, com os pilotos correndo – ou pegando mais leve para se poupar.
Importância dos jurados e jurados importantes
Para serem admitidos no Concurso de Elegância de Pebble Beach os candidatos devem se apresentar à organização do evento até ao início de janeiro. Os carros têm que estar impecavelmente restaurados ou conservados e, preferencialmente, sem terem participado em nenhum outro concurso ou mesmo em Pebble Beach nos dez anos anteriores.
A lista definitiva é divulgada em abril já com as diferentes categorias que vão a concurso: existem as “residentes” e as especiais específicas de cada ano, num total de 27 em 2022). Antes de passarem pelo criterioso crivo de qualidade dos jurados honorários (composto por diretores de design, CEO e outros especialistas de automóveis das mais importantes marcas mundiais), os candidatos estão sujeitos à avaliação não menos competente de especialistas como Ken Gross, jurado há mais de três décadas e uma verdadeira enciclopédia no que diz respeito aos Hot rods.
Os 90 anos do histórico Ford Roadster de 1932 foram a motivação para a escolha desta classe (Ford Historic Hot Rods) e a definição feita por Gross é bastante precisa: “carros anteriores a 1960, modificados, com pouca carenagem, motor grande e freios condizentesr”. Por isso, um especialista no tema.
Ford Historic Hot Rods é apenas uma das oito categorias especiais de 2022. As demais são as seguintes:
- Lincoln Centennial — celebração dos 100 anos desde que Henry Ford comprou a falida marca americana;
- Unorthodox Propulsion — sistemas de propulsão muito alternativos, como um carro movido a madeira, outro a carvão ou ainda dois veículos sem embraiagem e com pedais para o arranque;
- Talbot-Lago Grand Sports — existem apenas 28 dos 32 exemplares fabricados no final dos anos 40;
- Carrosserie Hermann Graber — carroçador suíço famoso pelo bom gosto na execução de descapotáveis e coupés de 1925 a 1970;
- Alfa Romeo 8C 2300 — considerado o mais avançado touring car de sempre por muitos colecionadores;
- McFarlan — o “Rolls-Royce” americano, com produção de 1910 a 1928 de que resistem apenas 20 unidades;
- Otto Vu — Fiat que pensava que era um Ferrari, de motor V8, que foi usado entre 1952 e 1954 por alguns carroçadores de renome mundial;
- Le Mans Centennial — oito dos carros na passadeira verde de Pebble Beach ainda deitavam fumo, acabados de chegar do circuito.
Best of show!
No desfile da tarde de domingo o direito a desfilar pela passerelle é concedido aos três primeiros classificados de cada classe, mas apenas o vencedor de cada uma da quase trintena de categorias acessa o glamuroso desfile final que, nesta 71ª edição do Concurso de Elegância (só não se realizou em 2020, devido ao covid-19), consagrou o Duesenberg J Figoni Sports Torpedo, propriedade de Lee R. Anderson Sr., como “Best of Show”.
Trata-se de um exemplar único do fabricante americano (o último automóvel nativo a ganhar Best of Show tinha sido o Packard Twelve, em 2013), que é o mais premiado na história septuagenária de Pebble Beach (soma agora sete títulos). A presidente da organização, Sandra Button, destacou “o casamento da potência do motor americano com a criatividade do encarroçador europeu”, numa vitória muito celebrada pelos donos deste clássico que chegou a ter o chassis separado da carroçaria antes do início da sua complexa restauração.
As novidades da MCW 2022
Acura Concept Precision EV
A Acura (marca premium da Honda) mostrou um crossover compacto elétrico que será chamado ZDX em sua versão final. O Acura Precision EV Concept é, então, o prelúdio de um veículo que nascerá da parceria entre a Honda e a General Motors, baseado na plataforma Ultium e que será lançado em 2024 nos Estados Unidos.
Família Audi Sphere
Em pouco mais de um ano, a Audi mostrou três conceirtos de carros elétricos para para diferentes. O Skysphere, desenhado e pensado para os clientes americanos em geral e californianos em particular, o Urbansphere, que mostra a visão de um monovolume com alguns genes de SUV e com foco na experiência a bordo nos lugares traseiros e o Grandsphere, que foi concebido na Europa e que deixa antever o sucessor do A8. Foi a primeira vez que apareceram juntos.
Bentley Batur
O Batur é o novo super-coupé da Bentley que será produzido de modo artesanal em Crewe (Inglaterra), numa série limitada a 18 unidades. Parte da base técnica é do Continental GT e antecipa algumas das linhas que veremos nos futuros modelos elétricos da marca inglesa. O motor W12 de 6 litros do Batur (nome do maior lago que existe em Bali) recebeu melhorias na admissão, turbocompressores e intercoolers para elevar a potência até aos 740 cv.
Bugatti W16 Mistral
O último modelo com motor W16 na Bugatti tem 1600 cv, que torna este roadster ainda mais especial, além de ser o primeiro Bugatti a ser apresentado desde que a marca francesa de super luxo passou a estar nas mãos do genial Mate Rimac. Os seus números são estratosféricos e aqui ficam apenas dois: 420 km/h e 5,95 milhões de euros por cada uma das 99+1 unidades previstas – e já vendidas.
Lamborghini Urus Performante
O mais vendido Lamborghini recebe uma versão com 16 cv extras do mesmo motor V8 4.0. São 666 cv beneficiados pelo alívio de 47 kg (fruto da utilização de mais componentes em fibra de carbono, como o capô), contribuiu para melhora no desempenho: 0 a 100 km/h em 3,2 em vez de 3,6 segundos e aumento simbólico da velocidade máxima em 1 km /h (306 km/h agora).
Lincoln Model L100
Passadois 100 anos desde que a Ford comprou a Lincoln e começou a transformá-la numa marca premium, L100 marca este centenário antecipando alguns dos traços dos seus futuros elétricos. Três deles serão lançados até 2025. Além da sua bateria em estado sólido, o conceito surpreende com soluções futuristas como um piso digital onde podem ser vistos gráficos personalizados, um joystick com ar de joia de cristal no lugar do volante e que pode mudar de posição dentro do espaçoso habitáculo deste veículo sem telas e que pode ser controlado autonomamente.
Lucid Air Sapphire
Com três motores elétricos e mais de 1200 cv, a versão mais esportiva do Lucid Air é o mais novo sedã elétrico mais rápido do mundo. Com suspensão afinada para estrada mas também para pista e freios carbono-cerâmicos, deverá ser capaz de acelerações de 0 a 100 km/h em cerca de 2 segundos e menos de quatro segundos até aos 160 km/h.
Maserati MC20 Cielo
Em apenas 12 segundos é possível transformar o MC20 num conversível de ainda mais entusiasmante de dirigir. Outra opção para quem não goste de correntes de ar é alternar a opacidade do teto: de totalmente transparente, como um vidro normal, a um mais opaco. Algo que já vimos em outros modelos, nomeadamente Mercedes-Benz e BMW. Isso é possível graças à aplicação de uma corrente elétrica na lâmina de cristais líquidos, que os desordena, bloqueando a passagem da luz.
McLaren Solus GT
Com o Solus GT a McLaren faz a transição do mundo dos videogames para as pistas. Ele materializa as linhas de um carro concebido para o jogo Gran Turismo Sport, sendo movido por um motor V10 5.2 aspirado e integrado no chassi, com um rendimento máximo na ordem dos 850 cv. Tanto a suspensão com controle reforçado de movimentos verticais, como a grande asa traseira (capaz de gerar uma pressão aerodinâmica até 1200 kg) e o cockpit de apenas um lugar criarão a sensação de pilotar um F1 para os donos das 25 unidades da produção limitada (já pré-vendida). O preço estará situado entre os 3 e os 4 milhões de euros.
Polestar 6 Cabrio
Numa era em que cada vez mais o cliente quer os seus produtos no imediato vemos que, no setor do luxo, a espera faz parte da receita de exclusividade. A Polestar só vai fabricar o modelo 6 a partir de 2026, mas isso não a impediu de ter iniciado agora as pré-reservas (com um custo de 25.000 dólares – reembolsáveis, claro) deste conversível elétrico que custará cerca de 200 000 euros. Os seus dois motores elétricos deverão render um máximo de 884 cv, sendo alimentados por um sistema elétrico de 800 volts. A autonomia prometida é de 600 quilómetros.
Porsche 911 GT3 RS
Já tinha sido mostrado pelos canais de divulgação da Porsche, mas esta foi a primeira aparição pública do novo 911 GT3 RS. É compreensível: estão na Califórnia muitos dos clientes desta versão pensada para a utilização em pista por parte de pilotos privados.
Entre as principais mudanças destacam-se o novo grande radiador frontal (que substitui os três menores que existiam antes e ocupa o espaço que seria da bagageira). Dispõe de três ailerons ativos (dois nas laterais e um traseiro) que permitem gerar enormes forças aerodinâmicas (409 kg a 200 km/h e 860 kg a 285 km/h). O motor rende 525 cv (15 a mais do que no GT3), a velocidade máxima é de 296 km/h e a aceleração de 0 a 100 km/h tarda uns breves 3,2 segundos. Preço: 265.000 euros.