Do Sedan ao Itamar: como o Volkswagen Fusca se tornou um sucesso no Brasil
Pequeno, esquisito e de aparência frágil, ele contrariou todas as regras. Mas conquistou o Brasil e faz sucesso até hoje
Publicado originalmente em junho de 2002
No final dos anos 50 não faltavam motivos para a felicidade geral da nação. Ainda pairava a euforia pela conquista da
Copa do Mundo na Suécia e a tenista Maria Esther Bueno brilhava em Wimbledon. As lambretas eram o sonho de todo jovem – mas isso era coisa para poucos, que saíam em bandos com garotas de óculos escuros na garupa.A televisão já era mania da classe média e havia até alguns modelos de controle remoto por fio. Depois do jantar, as famílias assistiam ao Repórter Esso e riam com as palhaçadas de Ronald Golias na Praça da Alegria, depois de lavar as mãos com o sabonete Vale Quanto Pesa. Para as mulheres, usar peruca era o último grito. Os homens, por sua vez, besuntavam o cabelo de brilhantina e ouviam os jogos de futebol pelo rádio transistor. Os carros nacionais usados começavam timidamente a aparecer nas páginas de classificados dos jornais ao lado dos Chevrolet Belair, Ford, Prefect, Studebaker…
Um clima perfeito para, em dezembro de 1959, o presidente Juscelino Kubitschek desfilar em pé a bordo de um VW conversível e inaugurar oficialmente a fábrica da Volkswagen na Via Anchieta, em São Bernardo do Campo (SP). Oficialmente porque desde o começo daquele ano o Fusca já era produzido. As Kombis, então, já deixavam a linha de montagem dois anos antes da cerimônia.
Não se pode dizer que o Sedan VW era uma absoluta novidade por aqui. Já em 1950 desembarcava no porto de Santos o primeiro lote de 30 daqueles estranhos carros. Não bastasse o motor traseiro, ainda eram refrigerados a ar. Três anos depois, começaram a ser montados no bairro do Ipiranga, em São Paulo.
Mas também não é verdade que ele já fosse popular. Pelo contrário.
Identificar um sedã é fácil. Veja se tem quatro portas e porta-malas saliente, como o Civic ou o Vectra. Mas, então, por que raios o Fusca chamava-se Volkswagen Sedan? Quem solucionou o enigma foi Luiz Alberto Veiga, gerente executivo de design da Volkswagen. “A palavra “sedã” vem do francês e designa um veículo para passageiros. Por essa razão, o Fusca ganhou esse nome”, explica Veiga. Quando a palavra “sedã” ganhou um sentido mais preciso, aí era tarde. Já havia se incorporado ao nome oficial. Na verdade, o Fusca está mais para cupê, palavra que teve origem na época das carruagens e depois migrou para os automóveis, caracterizando modelos menores cuja carroceria não apresenta divisão entre habitáculo e porta-malas. Mas, para Veiga, não tem conversa: “O Fusca tem uma forma única e imutável. Não é sedã nem cupê. É o Fusca”.
O Fusca – pequeno, desprovido de cromados e com 36 cavalos produzidos pelo motor 1200 – era a antítese do que aparentava ser um bom carro. A referência eram os exuberantes rabos-de-peixe americanos. O preço também não era o menor do mercado: 540.000 cruzeiros, equivalentes hoje a 39200 reais. Era mais caro que Romi-Isetta, Jeep Willys e Dauphine.
Mas foi uma questão de tempo, pouco tempo, para que os motoristas passassem a notar a resistência da suspensão nas precárias estradas do país. A facilidade com que os mecânicos resolviam eventuais problemas transmitia tranqüilidade. E era surpreendente o comedimento do VW diante da bomba de gasolina.
As qualidades do Fusca – uma adaptação popular de Volks, cuja pronúncia em alemão é “fôlks”, e que se disseminaria pelo país mais tarde – começavam a se espalhar. Em 1962, ele já era o líder do mercado.
Em pouco tempo os grandes centros eram servidos por uma imensa frota de táxis-mirins: alguns passageiros desaprovavam a falta do banco dianteiro; como não havia cinto de segurança, temiam uma freada mais brusca. Por outro lado, todos apreciavam a agilidade no trânsito.
Mas não seria justo creditar sua rápida aceitação exclusivamente à sua concepção. A publicidade – ou, para usar um termo mais em voga naqueles anos, a propaganda – foi um aliado poderoso na sua ambientação em terras brasileiras.
Localizamos um Fusca produzido em 1960, ano do lançamento da revista. É o segundo ano de fabricação nacional e o último que saiu equipado com a “bananinha”. Esse era o nome da pequena haste que ficava abrigada na coluna central e que fazia as vezes de pisca-pisca. Traduzindo, a luz de seta. Basta acionar a alavanca do lado esquerdo do volante para que a sinaleira descreva um ângulo de 90 graus, externando as intenções do motorista. São raros os modelos que ainda mantêm esse equipamento original, já que desde sempre as bananinhas foram alvo de curiosos que as puxavam para fora, danificando o mecanismo.
Mas esse não é o caso do modelo verde-berilo que você vê nas fotos, vendendo saúde e exibindo aparência incomum para a idade. Dada a partida, com a preguiça própria do sistema elétrico de 6 volts, o motor passa a trabalhar com a suavidade dos 1200 e o som arrítmico da marcha lenta que sai do escapamento duplo. A direção é leve e precisa, e o câmbio tem engates justos. A primeira marcha não é sincronizada e só pode ser engatada com o carro parado, ou quase.
Não se ouvem ruídos estruturais ao rodar. E muito menos barulhos no painel, tão comuns nos carros atuais. Pudera: plástico, só nos revestimentos dos bancos e laterais.
Também não há qualquer pista sobre o nível de combustível no tanque: o único instrumento disponível é o velocímetro, que inclui luzes-espia do dínamo e da pressão do óleo, além do indicador de seta. O motorista só fica sabendo que a gasolina acabou quando o motor engasga. Aí, é só virar a torneirinha (igual às usadas nas motos) que fica atrás da garrafa e libera os 5 litros da reserva. Que garrafa? Trata-se de uma bisnaga plástica que se aperta para esguichar o pára-brisa.
No primeiro teste feito por QUATRO RODAS (edição de setembro de 1961), o texto chamava a atenção para o fato de que a mudança na relação de marchas (o novo câmbio já tinha a primeira sincronizada) fez baixar a velocidade máxima de 118 para 112 km/h. Na aceleração fica clara a limitação do pequeno motor 1200: 39,4 segundos para ir de 0 a 100 km/h.
Razoável para aqueles tempos, mas uma eternidade para os dias de hoje. Isso explica o porquê da constante evolução dos motores enquanto o carro permanecia praticamente o mesmo. O modelo 1965 até ensaiou uma novidade. Era uma versão com teto solar, logo apelidada de “cornowagen”. Os poucos que investiram nesse modelo se apressaram em mandar fechar a abertura na capota sem deixar cicatrizes.
O velho motor 1200 resistiu até 1967. Nesse ano o carro ganhou 10 cavalos, passou para 46 cavalos. Quem fosse a uma autorizada encontraria o Fusca com uma cauda de felino saindo sob a tampa do capô, com o emblema “1300”. A graça fazia parte da campanha de lançamento do “Tigre”, apelido que não pegou, talvez porque o veneno não tenha transformado o carro numa fera.
O VW passou a rugir mais alto em 1970, com o Fuscão 1500. Era uma opção para aqueles que abriam mão da economia de combustível mas queriam um Fusca mais esperto. As mudanças não se restringiram ao motor de 52 cavalos: na traseira, ganhou bitola mais larga e lanternas com uma inédita luz de ré incorporada. E os freios a disco na frente eram equipamento opcional. Seu interior tinha um acabamento mais luxuoso e o painel era revestido de plástico imitando jacarandá.
A escalada da capacidade dos motores culminou em 1974 com o “Bizorrão”, o 1600S, com 65 cavalos. O 1300 foi produzido até 1984, quando foi aposentado. Até o final da primeira vida, em 1986, o VW seria oferecido somente com motor 1600. Nesse ano, segundo a revista Veja, 30% da frota do país era composta por Fuscas.
Em agosto de 1993, atendendo a um pedido do presidente Itamar Franco, a fábrica da Via Anchieta ressuscitou o Fusca. Trazia novidades como catalisador, pneus radiais e cintos de três pontos e sobreviveu até o final de junho de 1996, acrescentando em torno de 46.000 carros aos 3,3 milhões de Fuscas vendidos ao longo de sua primeira existência.