Opinião: tudo o que vi e conclui do futuro dos carros no Salão de Pequim
Cheio de novidades e de público, o Salão de Pequim me fez lembrar os áureos tempos dos salões ocidentais
Saí do Salão do Automóvel de Pequim, mês passado, na China, pensando no que vi: alguns estandes com gente se aglomerando e outros praticamente vazios. Os cheios eram os das marcas mais novas do mercado chinês, marcas independentes, sem parceiras ocidentais, embora muitas vezes ligadas a um mesmo grupo empresarial. No da Xiaomi, que era cercado, havia filas para se conhecer o único carro apresentado. Mas, afinal, qual a razão de tanto interesse por parte dos visitantes e dos consumidores – essas marcas começam a despontar no mercado chinês superando as vendas das outras, digamos, mais tradicionais.
Analisando friamente, esses carros chineses não trazem nada de novo, do ponto de vista técnico, para explicar o alvoroço. Dispositivos experimentados à exaustão pelos visitantes do Salão e registrados nos inúmeros vídeos exibidos nas redes sociais não explicam. Acionamento elétrico de portas, grandes telas centrais com imagens que podem ser arrastadas para as laterais e cartões de acesso são recursos conhecidos.
A única diferença é que os chineses automatizaram tudo, até o acionamento de porta-copos, e instalaram todos esses equipamentos juntos, sem necessariamente cobrar mais por isso, ao contrário da indústria ocidental, que disponibiliza o conteúdo em doses homeopáticas e preços ascendentes.
Uma explicação possível para esse sucesso é o fato de essas empresas jovens terem finalmente conseguido transformar o automóvel em um dispositivo eletrônico, ao menos conceitualmente. Esse era o desafio da indústria mundial, desde o início dos anos 2000 ou um pouco antes, quando percebeu-se que os jovens passaram a preferir ganhar um iPhone, em vez de um carro novo, ao completar 18 anos.
A indústria entendeu que precisava fazer alguma coisa para dar aos carros a mesma atratividade de um smartphone. Mas não sabia como. As novas chinesas conseguiram com alto grau de conectividade embarcada, telas que giram, entretenimento para todos a bordo e comandos eletrônicos para todo lado. Não é isso que os nativos digitais querem?
Participei de um test-drive, dias antes do Salão, e enquanto estava no Campo de Provas fui abordado por três jovens que filmavam e entrevistavam os jornalistas, para saber o que eles estavam achando dos carros, que me pediram para avaliar um dos modelos. Concordei já me preparando para dirigir o veículo. Mas eles não quiseram que eu ligasse o carro. Pediram apenas que eu experimentasse as funcionalidades da central multimídia. Terminada a experimentação, agradeceram e me dispensaram.
Mas por que foram os chineses a descobrir como satisfazer o que os novos motoristas desejavam e não os ocidentais, com tantos anos de pesquisa e desenvolvimento nas costas? Talvez a explicação esteja justamente nesse ponto: na expertise das empresas ocidentais, que não permitiu que elas inovassem. Esse fenômeno é conhecido no mundo dos negócios. O exemplo clássico é o da Kodak, que inventou a foto digital, mas considerou que essa tecnologia não poderia substituir o processo físico-químico, o qual lhe garantia um bom dinheiro.
Segundo o professor americano Clayton Christensen, autor do livro O Dilema do Inovador, preocupadas com coisas como eficiência, rentabilidade e conquista de novos mercados, empresas consolidadas desprezam soluções diferentes para resolver problemas já equacionados. E, dessa forma, a inovação acaba ficando a cargo de empresas menores, mais jovens ou mesmo de fora daquele segmento específico. Não é à toa que a sensação do mercado chinês seja o Xiaomi SU7, um carro produzido por uma fabricante de celulares.
Nesse contexto, a indústria ocidental acumulou diversas desvantagens em relação aos chineses no processo de transformação do carro em um dispositivo eletrônico. Os ocidentais podiam dominar o software aplicado aos motores e ao chassi. Mas, com as exceções de praxe, não tinham intimidade com a integração do software com o hardware a bordo dos veículos e pouco sabiam como era a experiência do usuário ao interagir com esse tipo de recurso. Outro problema: o ciclo de vida do produto na indústria automobilística é longo, de 6, 7 anos, enquanto o da indústria eletrônica é de meses, de 10 a 14. Ou seja: mudanças mais demoradas.
Além disso, a indústria ocidental (e parte da oriental) está em desvantagem em relação à China porque, no Ocidente, as empresas são independentes dos governos, os quais nem sempre estão dispostos a incentivar suas atividades e quando o fazem é de forma tímida, na comparação com a China, onde na maioria dos casos as empresas são estatais e os incentivos fazem parte das políticas do país.
A China gastou cerca de 173 bilhões de dólares em subsídios para suportar o setor de EV e híbridos entre 2019 e 2022, de acordo com Scott Kennedy, pesquisador do instituto norte-americano CSIS (Center for Strategic and International Studies). E, segundo o também norte-americano Kiel Institute, somente a BYD, que é a maior fabricante do país, recebe mais de 2 bilhões de dólares por ano do governo.
Na China, o governo participa dos sindicatos e não há grandes cobranças em relação a questões sociais e de meio ambiente, por exemplo, como existem no Ocidente. No caso dos temas ambientais, ocorre algo curioso, porque, ao incentivar o uso do carro elétrico, os governos ocidentais punem os fabricantes locais e favorecem os chineses que já dominam a tecnologia.
Os 11 dias do Salão de Pequim devem ter tirado o sono de muitos dirigentes da indústria do Ocidente. E não necessariamente pela diferença de fuso horário, que, no caso do Brasil, chega a 11 horas.
Com o tema New Era, New Cars (Nova Era, Novos Carros), o Beijing International Automotive Exhibition reuniu 77 lançamentos, sendo 46 de empresas locais e 31 de marcas estrangeiras, além de 40 carros-conceito, somando 117 apresentações. A mostra, que ocupou uma área de 220.000 m2, aconteceu entre os dias 25 de abril e 5 de maio, e recebeu cerca de 900.000 visitantes, segundo os organizadores.
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