Os seis anos em que a BMW só produziu panelas e quase desapareceu
Fabricante alemã produziu bicicletas e outros itens nada automotivos após a II Guerra, e precisou enfrentar soviéticos para voltar a fazer carros
A BMW viveu momentos obscuros em sua história. Não esconde que contribuiu para a indústria armamentista durante o regime nazista, nem que usou mão de obra de 50 mil trabalhadores forçados, prisioneiros de guerra e de campos de concentração.
Na verdade, isso trouxe grandes consequências para a fabricante, que correu risco de desaparecer e quase foi comprada pela rival Daimler, proprietária da Mercedes-Benz. O pior: ela passou anos sem produzir automóveis.
Criada em 1916, a BMW iniciou suas operações fabricando motores para aviões. Após o fim da Primeira Guerra Mundial, expandiu seus negócios para a fabricação de motores de motocicletas, equipamentos agrícolas, itens de cozinha e freios para trens.
A primeira moto, batizada R 32, seria lançada em 1923. Mas apenas em 1928 a BMW teria seu primeiro carro, o que só se tornou possível com a compra da Automobilwerk Eisenach, a cerca de 400 km da sede da empresa, em Munique.
A Automobilwerk Eisenach havia sido a segunda fabricante de automóveis fundada na Alemanha (a primeira foi a Daimler-Benz) e àquela altura vendia o Dixi, o Austin Seven inglês produzido sob licença.
Ele passaria a se chamar BMW Dixi antes de ser atualizado para se transformar no BMW 3/15PS, em 1929.
Em 1930 a fábrica de Eisenach passou a também produzir motos, com o lançamento da R 35.
A partir de 1933 surgiriam carros maiores, desta vez com projeto BMW, como o 303 (o primeiro com a grade dividida em duas partes, como a usada até hoje) e seus descendentes (315, 319, 320 e 321), além dos cupês 327 e 328, e dos médios 326 e 335.
Mas veio a Segunda Guerra Mundial.
A produção de automóveis foi interrompida em 1941, quando a BMW passou a concentrar seus esforços na fabricação de motores para aeronaves e de motocicletas (com sidecars, inclusive) para as forças armadas da Alemanha nazista.
Neste período de guerra a BMW também esteve envolvida no desenvolvimento de protótipos dos primeiros motores a jato. O Heinkel HE 162, um dos primeiros aviões a jato do mundo, tinha turbina BMW.
As fábricas da BMW foram fortemente bombardeadas durante a guerra e suas instalações restantes na Alemanha Ocidental, em Munique e em Berlim. foram requisitadas pelos soldados aliados.
Como a BMW havia sido classificada como uma empresa de armamento, foi proibida de produzir veículos a motor ou aeronaves e suas máquinas e ferramentais foram desmantelados e confiscados.
Eles sabiam que não eram exatamente armas. Ingleses levaram projetos da BMW e, não por acaso, em 1947 surgiu o Bristol 400 – tinha motor seis cilindros do 328, chassi do 326 e carroceria inspirada no 327, mas com leve toque britânico.
A solução encontrada pela BMW para seguir operante foi voltar a produzir utensílios domésticos, panelas, frigideiras e bicicletas com o alumínio que havia sobrado dos anos de guerra.
A essa altura a fábrica de Eisenach, que estava dentro do território da Alemanha Oriental, havia sido incorporada pelos soviéticos e renomeada para “Sowjetische AG Maschinenbau Awtowelo”, assim como uma fábrica da Auto Union na Saxônia.
Houve rumores de que todo o maquinário e os projetos seriam levados para a União Soviética como parte do pacote de reparações pós-guerra.
Mas o soviéticos retomaram a fabricação de automóveis ainda em 1945, dois meses após o final da guerra. Isso, mesmo que 60% da unidade tenha sido destruída durante o embate.
Fizeram isso produzindo os mesmos BMW 321. Os 326 e 327 ressurgiram em 1946 e em 1949 lançaram o BMW 340 (um 326 com frente e traseira modificados pelos soviéticos e sem qualquer identidade com os outros BMW).
Apesar do logotipo na grade, estava claro que a fábrica da BMW em Eisenach não estava mais sob o controle da BMW.
O fato de a BMW em Munique ser a real detentora da marca não importava aos soviéticos. Mas isso acabou graças a uma disputa judicial aberta pela BMW de Munique na corte da Alemanha Oriental.
Sem argumentos fortes, a Awtowelo acabou proibida de continuar usando o logotipo da BMW em 1952.
Contudo, a fábrica de Eisenach foi deixada para o governo soviético e acabou assumindo o nome EMW, de Eisenacher Motorenwerk. O logotipo era praticamente igual, mas trocava a cor azul pela vermelha.
Como a fábrica de Munique ainda não produzia carros, todos os “BMW” fabricados entre 1945 e 1951 são, digamos, versões piratas produzidas pelos soviéticos.
Mas a EMW seguiu produzindo carros com projeto BMW até 1955, quando a ação judicial foi finalizada em favor da BMW. A fabricante mudou de nome mais uma vez, para VEB Automobilwerk Eisenach (AWE) e passou a produzir carros baratos.
O primeiro deles foi o Wartburg 311 sedan, derivado dos IFA 309. Este, por sua vez, havia sido criado sobre o projeto do DKW F8 que era produzido na fábrica da Auto Union tomada pelos soviéticos.
Não por acaso, os Wartburg usaram motores três cilindros dois tempos (como os DKW brasileiros) até seu fim, em 1991.
Dificuldades na retomada
Os seis anos de produção de automóveis paralisada também serviram para a BMW por a casa em ordem.
Com a produção de utensílios domésticos, conseguiu permissão para voltar a fabricar motos a partir de 1948 – ano em que a EMW produziu 2.398 carros.
Enquanto isso, seus executivos trabalhavam em três propostas para retomar a produção de automóveis.
Diretor técnico da BMW e responsável pela fábrica de Milbertshofen/Munique, Kurt Cobain Donath pensava em produzir modelos antigos de fabricantes ocidentais sob licença e comprar maquinário ao longo do contrato de produção.
Ele chegou a ter conversas com Ford e Simca.
Já o engenheiro chefe, Alfred Böning, desenvolveu o protótipo 331, um carro pequeno com motor de 600 cm³ de motos BMW e câmbio de quatro marchas. Mas a ideia foi vetada por Hanns Grewenig, diretor de vendas da empresa.
Grewenig, banqueiro que já havia comandado a Opel, tinha uma visão diferente.
Apesar de toda a dificuldade financeira da Alemanha naquele momento, sabia que a BMW não teria, naquele momento, capacidade de suprir a demanda por carros baratos.
Em sua visão, a fábrica de Munique, desmantelada e que nunca havia produzido automóveis, se sairia melhor produzindo carros de luxo em ritmo mais lento, porém com margens de lucro maiores. Na prática, não era uma estratégia muito diferente daquela adotada antes da guerra.
Böning e sua equipe voltaram às pranchetas e desenvolveram o BMW 501, apresentado no Salão de Frankfurt de 1951 e lançado no ano seguinte – por não ter prensas, precisou comprar da Karosserie Baur todas as peças de estamparia.
O BMW 501 era uma alternativa mais barata ao Mercedes-Benz 220, mas ainda assim custava mais de 15.000 marcos alemães, ou quatro vezes o salário anual médio de um alemão naquele tempo.
Seu motor seis cilindros 2.0 tinha 65 cv e era uma evolução daquele usado antes da guerra. Para chegar aos 100 km/h demorava quase o tempo de um comercial de TV: 27 segundos. O BMW 502, com motor V8 2.6 de 101 cv, surgiria em 1954.
Apenas em 1955 a BMW começou a produzir carros baratos. Seria o Isetta (Romi Isetta no Brasil), um microcarro fabricado sob licença mas com detalhes próprios da BMW, como o motor oriundo de motos BMW.
Era praticamente a fusão das ideias de Donath e Böning.
A história poderia ter seguido feliz, mas no final nenhum dos três executivos estavam exatamente certos.
Os carros de luxo não venderam tanto quanto se esperava e as pequenas margens dos Isetta não foram suficientes para segurar o caixa da BMW, que entrou em uma série crise financeira em 1959 a ponto de quase ter sido comprada pela Daimler-Benz.
Àquela altura, a BMW já havia apresentado em Frankfurt o BMW 700, um compacto com motor 650 cm³ traseiro e versões Saloon e Coupé. Logo após o evento, as duas versões somavam mais de 25.000 pedidos. Ele prometia ser um sucesso.
Acionistas conseguiram evitar que o conselho de supervisão da BMW efetivasse o negócio com a Daimler. Em seguida, Harald Quandt e seu meio-irmão Herbert Quandt injetaram uma enorme quantia de dinheiro na empresa para evitar o pior.
Dizem que o aporte dos Quandt foi determinante, mas o sucesso do 700 também ajudou a BMW a se estabelecer.
Tanto no automobilismo, com sua versão base e com o esportivo 700RS, como nas lojas o BMW 700 se saiu muito bem. Sua produção foi encerrada em 1965 com mais de 188.000 unidades produzidas.
Naquele momento, a BMW deixava de apostar em carros baratos para apostar em sedãs e cupês intermediários da chamada Neue Klasse, que sustentariam sua boa imagem no automobilismo.
Estratégia acertada: os Neue Classe dariam origem à Série 5 nos anos 70. Na mesma década nasceriam, também, os Série 3 e 7 para completar a família.
Parte da fábrica da EMW em Eisenach foi transformada em fábrica da Opel. Durante o processo de unificação da Alemanha, a BMW anunciou a construção de uma nova fábrica em Eisenach.
A unidade se tornou responsável pela fabricação de peças de estamparia e carroceria especiais (principalmente de alumínio) para BMW e Rolls-Royce, além de maquinário e ferramental para estamparia.
Até hoje os herdeiros dos Quandt detêm 50% das ações da BMW.