Os 60 anos do kart no Brasil: esporte de Senna e Piquet era marginalizado
O Kart chegou no Brasil no começo dos anos 1960. Conheça mais dos primórdios do esporte que foi o estopim da popularização do automobilismo no Brasil
Uma grande reportagem publicada na QUATRO RODAS de abril de 1961 falava sobre um esporte a motor surgido poucos anos antes nos Estados Unidos. Um esporte promissor e não tão caro, mas que no Brasil ainda era marginalizado. Era o Kart, que estava chegando no Brasil e enfrentava barreiras e dificuldades para ganhar popularidade.
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Não havia pistas, nem divulgação do esporte. E boa parte do preconceito vinha do barulho dos motores dos pequenos monopostos. Mas seu regulamento foi certeiro ao exigir que o esporte continuasse a evoluir da maneira mais barata possível ao usuário, e que 90% do carro fosse todo fabricado no Brasil.
Agora, 60 anos depois, o resultado está ai. São milhares de competições da modalidade que tem diversas categorias e todo o legado de ser uma grande escola formadora de pilotos. Campeões mundiais como Senna e Piquet começaram no Kart e outros grandes pilotos ainda andam, como é o caso do Rubens Barrichello que compete até hoje e Felipe Massa, que é hoje o presidente do Conselho Mundial de Kart da FIA.
Mas vamos voltar no tempo para entender como tudo isso começou. A seguir, a íntegra da reportagem de 1961, que não foi assinada:
KART, substantivo masculino. Carro leve e potente, veloz e barato, baixinho e barulhento; surgido há 4 anos nos Estados Unidos onde, como esporte, ainda é um grande sucesso; considerado jardim de infância para automobilistas; começou como aparador de grama e hoje é fabricado por grandes indústrias; ainda sem futuro definido no Brasil. O tipo do carro fácil para um filho chegar confiante diante do pai e pedir:
– Me dá um?
Porque a argumentação paterna quase que inevitavelmente há de fracassar. Não poderá ser alegado que é muito caro, que é muito perigoso e que não é diversão para crianças ou adolescentes. E para gente grande também.
Talvez que o principal traço de sua personalidade provenha da falta de tamanho; mas dizem que tamanho não é documento. Achatado, quase tão largo quanto comprido, ele passa zumbindo de modo a ensurdecer quem esteja por perto. Assim é um Kart; lembra um besouro, dos mais barulhentos.
Um futuro de dúvidas
O futuro do Kart, no Brasil, é ainda incerto, apesar de haver os que gostam dele como esporte. No Rio de Janeiro, fundou-se um clube para o Kart: o Clube Carrera de Guanabara. Em São Paulo, além do Centauro Motor Clube para ele, existem também o Kart Clube e o Auto Esporte Clube. Em matéria de programações, há falhas sensíveis, poucas provas para o Kart e muito limitadas.
Pista especial, particular, para o Kart, é pensamento apenas de um grande animador – o paulista Cláudio Daniel Rodrigues. Talvez por estar fabricando esses carros, é possível que ele reserve alguns para o seu negócio, que consiga arrendar um terreno perto do centro da cidade, que construa uma pista, que arma a publicidade em torno, e que passe a alugar Karts para todos poderem experimentá-los. Fora disto, tudo é problemático.
Em São Paulo, carros e corredores têm sido expulsos de locais onde se quis fazer corridas. Uma competição dividida em várias séries – nos moldes de um campeonato – foi organizada ano passado (1960) pelo Centauro Motor Clube. Acabou sendo realizada a prestações, nos mais diversos lugares.
Começou no Jardim Marajoara e lá durou apenas uma manhã de domingo, porque os moradores reclamaram contra o barulho e conseguiram uma proibição para novas provas. Depois, continuou no Morumbi e no Alto de Pinheiros, com resultados e consequências idênticos.
Banidos de todos os lugares, o entusiastas do Kart foram conseguir algo com o Poder Municipal. O parque do Ibirapuera foi o palco para a prova final da competição. Mas não se trata de uma pista apropriada e nenhuma renda pode ser obtida com a venda de ingressos.
No Rio: maior impulso
Dois fatos (não há pistas no Brasil + a propaganda tem sido insuficiente) constituem a fórmula que talvez possa justificar bem o pouco desenvolvimento que o Kart vem tendo em nosso país.
A falta de pistas é um fator bastante negativo contra o progresso desta modalidade esportiva. Até hoje, as competições foram realizadas em locais improvisados: o citados em São Paulo, a Barra da Tijuca e a Exposição Internacional de Indústria e Comércio (RJ), o Estádio Caio Martins (em Niterói) e a Cascatinha (em Petrópolis). E poucos mais, sempre nessas condições. Não se pode correr neles, permanentemente.
Há, hoje, muitos proprietários de Kart, no Brasil. Mas correr onde? E suponhamos que cada um consiga um bom local. Aí fica a dúvida: onde conseguir competidores? Se aqui tivéssemos pistas particulares para carros de fora, a situação desse esporte já seria bem outra.
A falta de propaganda é outra coisa que atrasa ou impede o desenvolvimento do Kart. Poucos são, por enquanto, os que já ouviram falar nesse tipo de carro. Muitos dos que ouviram formaram idéias irreais a respeito. Imaginam um esporte bastante caro e perigoso; no primeiro caso, mais adequado para gente rica e no segundo para automobilistas famosos como Fangio, Ascari, Farina, Varzi e Chico Landi. E junto com a falta de propaganda, escasseia por inteiro, também o incentivo.
Trata-se de um entrave sério ao progresso do Kart. Meia dúzia de faixas e uma dúzia de cartazes esticados entre postes ou colados em paredes, além de uma fraca cobertura jornalística, precedem sempre uma competição. Consequência: apesar do acesso gratuito, no dia marcado para a prova, não aparecem mais que uns 50 espectadores, em geral parentes e amigos dos participantes.
Houve casos excepcionais, como o de uma prova realizada no Rio, durante a Exposição Internacional de Indústria e Comércio e dentro do próprio recinto: os visitantes, atraídos pela movimentação e pelo barulho, acotovelaram-se para ver a corrida.
Um fato estranho: em sua grande maioria, os Karts estão sendo fabricados em São Paulo; mas é no Rio de Janeiro que o esporte vem recebendo impulso maior. Justifica-se com um argumento: no Rio, a promoção tem sido mais intensa. Em São Paulo, as poucas provas realizadas foram normais; no Rio tem havido competições noturnas, femininas, de revezamento, contra-relógio, etc.
Um Kart somente é capaz de capotar se alguém levantá-lo, virá-lo e atirá-lo ao chão. Mesmo assim, ainda pode cair na posição certa. Uma das razões que causam esta inegável qualidade: a largura é em geral 2/3 do seu comprimento. Além disto é muito baixinho; o motorista fica a quase 3 dedos do chão.
Quatro adjetivos têm sido utilizados para qualificar o Kart: leve, potente, veloz e barato. E uma expressão vem sendo dada à modalidade esportiva por ele criada: “1º esporte bossa nova”.
Sensações estranhas oferece o carrinho a quem o dirige. Se o Kart vai indo a uns 40 quilômetros por hora, o motorista está crente que vai a uns 80. Não há uma fórmula matemática para explicar o fenômeno, talvez proveniente da falta de carenagens ou do fato de estar o piloto muito próximo ao chão ou ainda do zumbido excessivo. É uma impressão falsa e esquisita, que se tornou um motivo interessante para quem quiser praticar o esporte.
Dirigir um é coisa das mais simples. O kart brasileiro tem dois pedais: o da direita acelera e o da esquerda freia. Posição estranha, pois o motor está sempre do lado esquerdo e o freio do direito. O mais é ligar o motor por meio de uma cordinha, como os barcos que têm motor de popa, acelerar e partir.
No início, estranhar-se-á bastante o carrinho e a maneira dele se portar; depois de algum tempo já se estará mais familiarizado com seus controles. Começar-se-á a desenvolver mais velocidade, sentir-se-á que o carrinho derrapa muito, mas nunca fugindo ao controle do motorista. E se começarmos a acelerar muito, ao enfrentar uma curva, ele passará a andar muito mais para o lado que para a frente. Mas virar, nunca.
O primeiro Kartódromo do país surgiu no Santa Cruz Week-End Club (perto de Cotia, em São Paulo). Para sua inauguração vieram concorrentes de vários pontos do país e uma assistência regular, mas entusiasta, compareceu para ver as variadas provas.
Esta pista tem a forma de uma ferradura dupla; seu asfalto, bastante liso, é o mais adequado para competições de Kart. Mas o local fica um pouco afastado da cidade; com o tempo poderá ser preterido se no Parque do Ibirapuera for construída a pista que já está projetada.
A pista ideal
O ideal seria um Kartódromo como o do desenho que ilustra esta reportagem. O modelo é italiano; trata-se de um projeto que deverá ser executado em Monza e idealizado especialmente para corridas de Kart.
As condições por ele apresentadas são adequadas para ambas as partes: corredores e espectadores. A extensão total é de 526 metros. Cinco retas e sete curvas assinalam um pormenor importante: para uma corrida de Karts ser emocionante e combatida, precisa haver curvas, de ângulos bastante variados.
A prova de Monza tem 251 metros de retas; o restante foi destinado a curvas. Os ângulos destas oscilam desde, no mínimo 90º graus até, no máximo, 200º graus, em distâncias diversas que vão desde, no mínimo 15 metros, até, no máximo, 110 metros. A largura da pista é quase única: 5 metros em toda a extensão, excetuando-se a reta da partida, onde ela atinge 6,50 metros.
Por enquanto no Brasil, os assistentes têm entrado de graça para ver corridas de Karts; não havendo Kartódromos; não há possibilidades de cobrar-se ingressos. Mas nos Estados Unidas, França, Itália, Inglaterra e Argentina, todos pagam para assistir: os locais de corridas são fechados e o público costuma acorrer entusiasmado, De modo geral já estão afeiçoados a esta modalidade de esporte.
Uma das poucas coisas que o Kart já tem no Brasil: um regulamento definido e talvez definitivo. Nem sempre ele é obedecido, Prevê duas categorias, considerar a Júnior. E no final das contas, aparecem competições com 3 ou mais categorias. De qualquer modo, o regulamento existe; e é aprovado pelo Automóvel Clube do Brasil; e tem sido norma de orientação para os 3 fabricantes ora existentes no país.
As categorias do regulamento são a Brasil Standard e Brasil Especial, muito parecidas nas especificações. A diferença entre elas é que na primeira “o motor dever ser de 2 metros, com 125 cc., estacionário de série” e na segunda ” o motor deve ser de 2 tempos, 125 cc. , podendo ser ou não estacionário”. Mas em ambos os casos, o motor deverá ter 90% do seu peso nacionalizado. E daí por diante as duas se confundem.
O regulamento é sempre racional. Menor ainda o número de especificações previstas para a categoria Júnior: o motor deve ser de 2 tempos, ter no máximo 50cc, podendo ser nacional ou não; o chassi deve também ser de fabricação nacional. E é só.
Mas há uma proibição forte e expressa para todos. Ela cuida, acima de tudo de fazer com que um Kart não se torne um veículo caro. E determina: não é permitido o uso de carenagens acima dos eixos e longarinas. É importante e existe, praticamente, apenas no Brasil; em outros países, os Karts chegam a assumir foros de miniaturas de Fórmula Jr.
Um dos fabricantes
Dos três fabricantes de Karts em São Paulo, tomemos um: Cláudio Daniel Rodrigues, que registrou seus produtos como “Rois-Kart” e que os lança em todas as competições programadas no país. O primeiro modelo saído de sua oficina ficou tão feio que foi batizado de “Bruxa”. Mas isto foi no ano passado. De lá para cá, houve graduais evoluções e hoje, já na 3º série de fabricação, ele tem lançado Karts mais bonitos e potentes.
No começo, era um a um. Agora, a média é de 30/35 por mês. Todo material empregado é de origem nacional, à exceção de rolamentos, carburadores e magnetos; mesmo estes não demorarão a ser da industria nacional. Cláudio vende o Kart completo, a quem assim o queira; mas os vende também desmontados: motores, chassis, e quaisquer peças em separado, para os que prefiram construir parcialmente ou montar em casa.
Construir um Kart – no dizer de Cláudio – é coisa simples. Pretende ele fazer uma espécie de linha de montagem em sua oficina, que vai mudar de nome: passará a ser “Rois-Kart Motores e Veículos Ltda.” Mas vejamos como ele, construtor, descreve a fabricação de um:
– “O chassi é o mais difícil de fazer, para ficar perfeito. Começa com a parte de separação de material, e cortes nas medidas certas. Depois, a soldagem de tubos e eixos; tudo feito sobre um gabarito. Deste, o chassi sai pronto, sem ter torção alguma (perfeitamente alinhado). Depois, o chassi vai para a seção de montagem. Colocam-lhe a barra de direção, mangas de eixos, freios, comandos e pedais. Vai então para a secção final, que é a de colocação do motor, das rodas, e dos ajustes finais. O motor também é construção minha. Independentemente de tudo, ele é testado e fica funcionando num banco de provas pelo prazo mínimo de 2 horas. Já sai amaciado. E a parte final da construção do Kart é a da pintura, do polimento e do estofamento do banco. Findo isto, está pronto”
Até hoje, da oficina do Cláudio, devem ter saído uns 120 e poucos desses carrinhos. A maioria ficou em São Paulo ou foi para o Rio de Janeiro; na verdade, poucos foram compradores de outros estados. Nesse número total, não estão incluídos os Karts vendidos para serem montados.
Sucesso em outros países
Foi em 1956 que o primeiro Kart apareceu nos Estados Unidos. Com o passar do tempo, sob alguma publicidade, a modalidade evoluiu até chegar ao que é hoje: esporte favorito para milhares de pessoas: homens, mulheres ou crianças. Três fatores contribuíram para o sucesso alcançado em tão breve tempo, nos Estados Unidos:
1 – A sensação oferecida ao motorista, de estar dirigindo um carro de corridas a alta velocidade;
2 – O baixo custo de um veículo destes, vendido a crédito, bem como as despesas reduzidas que ele provocará;
3 – A facilidade com que se pode adquiri-lo desmontado, ou em peças isoladas para serem armadas em casa.
O fato é que o Kart se transformou num costume nacional, norte-americano. Mais de 250 fabricantes começaram a produzi-lo em série, logrando no ano passado um faturamento superior a 1 bilhão de dólares. Apareceram pistas especialmente para ele, onde não há competições, mas os carros são alugados a quem quiser divertir-se um pouquinho, E o sucesso redobrou.
Para competições, há hoje nos Estados Unidos muitos regulamentos. Os modelos existentes neste país são muito variados. Alguns possuem um motor, mas muitos têm dois. Com isto, alcançam-se velocidades elevadas e conseguir uma média de 100 milhas numa prova é coisa quase normal. Na maioria, os carros de lá tem suspensão e amortecedores nas quatro rodas. Mas de um modo geral, esses carros dos Estados Unidos estão-se afastando um pouco da orientação usada, quando da sua idealização: simplicidade para um preço acessível a todos. Os mais barato Kart norte-americano custa hoje US $ 250,00. O modelo com 2 motores orça ao redor dos 600 dólares.
A França, a Inglaterra, a Itália e a Alemanha são os outros países onde o Kart chegou e obteve grande êxito. Há pistas apropriadas, industrias em funcionamento, competições com regulares frequências.
Aqui no Brasil, segue-se muito a linha norte-americana. Mas a tendência é não passar das 125 cc. e impedir a utilização de 2 motores, carenagens e suspensão.
Como dirigir o Kart
Na história do Kart, Ciro Caires já deixou o seu nome registrado. Uma das curvas da pista do Jardim Marajoara (SP) está sendo identificada como “A curva do Ciro”. O porquê deixamos que ele confesse:
– “Bobeei, Andei abusando um pouco”.
Contou como foi. Ele não vinha sendo bem sucedido nas primeiras voltas da competição. Aí começou a exceder-se. Imprimiu a máxima velocidade. Entrou assim numa curva. Encontrou terra e areia. O carro desgarrou inteiramente, fugiu-lhe o controle e foi bater na calçada. Consequências: um Kart no cemitério. A seu respeito, Ciro disse:
– “Apenas levei um tombo”.
E Ciro Caires é um corredor experimentado, já tendo participado de inúmeras provas nacionais e internacionais, em muitas categorias. Dirigir um Kart, no entender dele, é coisa bastante simples. Porém a coisa muda, quando se pretende competir e da mesma forma que para carros de corridas grandes, há que ter-se por detrás um bom mecânico. Porque para competir, deve-se treinar bastante, a fim de conhecer o carro e suas possibilidades.
Ciro recomenda que se dirija mais utilizando um sistema de derrapagens com a parte traseira do carro, “O motorista deve ajudar o carro com o seu peso, quando entrar numa curva”.
Em competições com veículos de igual potência, as crianças levarão grande vantagem. Considerando dois fatores (potência+peso), elas arrancarão na frente, todas as vezes em que uma rápida aceleração for necessária. Por isto, Ciro acha que o regulamento devia prever o equilíbrio de peso de todos os concorrentes com a potência dos seus carros. Antes de cada largada, então, os organizadores se encarregariam de fazer com que um fator variasse em função do outro.
Mas a opinião de Ciro Caires é toda favorável ao Kart como divertimento e como um trampolim:
–”Como se fosse um curso primário, para quem se destina a uma escola superior. As mesmas emoções de um carro especial de corridas nele são encontradas. É um tipo rudimentar, simples, que qualquer um poderá construir por suas próprias mãos, de aquisição fácil, a um preço relativamente baixo. Com a vantagem de ser quase inteiramente feito aqui no Brasil”.
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