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O tanque anfíbio com motor radial que foi de piada a herói do Dia D

Um blindado versátil e um engenheiro excêntrico foram essenciais para o sucesso dos Aliados na invasão da França

Por Eduardo Passos
Atualizado em 21 nov 2020, 19h28 - Publicado em 21 nov 2020, 08h03
DD-Tank
Essa ‘saia’ desengonçada fez com os tanques de 30 toneladas navegassem 5 km até praias francesas (Imperial War Museum/Divulgação)

Na madrugada de 6 de junho de 1944, uma imensa frota de tanques customizados partia da Inglaterra rumo à França, em um dos momentos mais importantes da História. Rebocadas por gigantescas balsas, as centenas de blindados eram ideias de um soldado excêntrico, e foram ridicularizadas antes de liderar o desembarque aliado na Normandia.

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O chamado Dia D marcou a virada da Segunda Guerra Mundial no oeste europeu, iniciando uma corrida entre soviéticos e a coalizão liderada por britânicos e americanos para ver que chegaria em Berlim primeiro, derrubando os nazistas e encerrando o conflito por lá.

Sob o codinome de Operação Overlord, essa foi, em vários aspectos, a maior operação logística da história, e diversos veículos foram construídos especialmente para avançar sobre as praias francesas. Um deles foi baseado no M4 Sherman, o tanque que ‘aprendeu a nadar’.

Do it yourself

Abreviação de ‘Medium Tank 4’, o M4 Sherman foi o blindado mais popular dos Aliados na Guerra. Ele foi lançado pelos EUA em 1942, como resposta aos primeiros tanques americanos do conflito, que apresentavam desempenho sofrível.

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Mesmo inferior aos alemães Tiger e Panther, o M4 honrou a tradição de produção em massa popularizada por Henry Ford, e seu projeto mais simples permitiu que fosse fabricado com extrema facilidade, em qualquer planta industrial disponível. Não à toa, quase 50 mil foram produzidos e distribuídos aos diversos exércitos aliados, vencendo, literalmente, na quantidade.

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Os tanques americanos eram menos avançados que os alemães, mas venciam na quantidade. Para atingir esse volume, obviamente as fábricas de Detroit — como essa da Chrysler — foram usadas (U.S. Army TARDEC/Divulgação)

Um dos pontos mais incríveis do blindado era seu motor C9. Sim, você leu certo: era um incrível motor R975 radial 16.0, com 9 cilindros e movido a gasolina. A razão disso era prática, já que se economizava material — o motor radial utiliza apenas uma biela — e a manutenção era mais fácil, podendo os cilindros serem trocados sem que o bloco fosse removido do chassi maciço de até 7 cm de espessura. Outro detalhe era a refrigeração a ar, muito útil para que eventuais perfurações do motor não causassem vazamento do líquido de refrigeração.

Craig Howell
O Continental R975 não fazia feio: até 123 kgfm de torque e 400 cv, levando o Sherman a uma máxima de 50 km/h (Craig Howell/Acervo pessoal)

Fazendo inveja a muita picape moderna, o Sherman também já contava com bloqueio de diferencial, e usava justamente esse sistema para fazer curvas, transferindo mais ou menos força aos seus lados. Para agilizar o esterçamento, também havia freios individuais para cada lagarta.

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Outro detalhe muito importante era — curiosamente — a suspensão: essencial para que os atiradores tivessem estabilidade de mira durante os combates. Mais uma vez a criatividade rendeu frutos e ao longo da guerra o blindado contou com três tipos de suspensão baseada em molas volutas.

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As molas volutas são muito mais compressíveis, mas têm vida-útil curta (HeGong/Divulgação)

Esse tipo de mola é fabricado a partir de chapas de aço especial, enroladas até formar uma espécie de cone. As volutas, além de aguentarem mais peso que molas convencionais, também são mais compressíveis.

Comparativo: VVSS x HVSS

O mais eficiente dos sistemas de suspensão era o HVSS, lançado em 1944. Ele consistia em novos braços de suspensão que transmitiam o peso do tanque para molas dispostas horizontalmente. Além de rodagem mais suave, a redução de altura permitiu instalação de um amortecedor hidráulico auxiliar. Por fim, novos eixos duplos ampliavam a área de contato com o solo e melhoravam a tração.

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Monte seu tanque

A facilidade de construção do Sherman significou, também, alto grau de personalização. Desse modo, além do veículo ser aperfeiçoado à medida que seguia em combate — lembre-se, a guerra não dá tempo à prototipagem —, engenheiros pensavam soluções para terrenos e batalhas que iam de praias da Oceania a pântanos da Rússia.

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O major-general Sir Percy Hobart (Lt. Tanner/War Office)

Um desses inventores era Percy Cleghorn Stanley Hobart, que aos 55 anos havia sido enviado à Reserva por conta de suas ideias mirabolantes para infantaria blindada. Fora de combate, Hobart foi enviado para o batalhão civil de sua cidade natal, onde ajudou a criar um sistema de defesa tão eficiente que chamou a atenção de ninguém menos que Winston Churchill, que o trouxe de volta para o Exército.

Lá o inventor pode acompanhar o ataque à cidade de Dieppe, em 1942, quando os Aliados tentaram desembarcar na França pela primeira vez. Hobart notou que o fracasso dos tanques em avançar sobre a praia deixou os soldados desprotegidos. Suas ideias para o futuro desembarque na Normandia, baseadas no que observara, chegaram a Churchill e a ninguém menos que o general Dwight Eisenhower.

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Em Dieppe, a ineficiência dos tanques custou muitas vidas (Desconhecido/Coroa Canadense)

As ‘Gracinhas’ de Hobart

Com aval do Estado-Maior aliado, os projetos de Percy Hobart começaram a ser produzidos, aproveitando imensamente a versatilidade do Sherman. Apesar da resistência inicial, os americanos foram obrigados a aceitar a necessidade de um tanque não só capaz de trafegar por águas rasas, mas também com flutuadores e propulsão a hélice, já que era impossível prever a profundidade na qual o desembarque seria necessário.

Como o engenheiro era alvo frequente de piadas, suas invenções ganharam o nome de “Hobart’s Funnies”, ou “Gracinhas do Hobart”.

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Um Sherman DD com sua tela levantada e propulsores em destaque. Cabia ao motorista escolher para onde direcionar a potência (Divulgação/Imperial War Museum)

Inspirado por Hobart, o Sherman Duplex Drive foi projetado exclusivamente para o Dia D. A ideia era que os agora anfíbios caíssem na água a cerca de 5 km da areia, percorrendo esse trajeto em 10 minutos. Em caso de mar revolto, os tanques deveriam seguir junto dos soldados até partes mais rasas.

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Para cumprir essa inusitada tarefa, os veículos tiveram a porção inferior do casco completamente selada. Além disso, hélices de propulsão foram conectadas ao motor através de uma transmissão especial — daí o nome Duplex Drive (‘tração dupla’, em tradução livre) — e foram encaixados snorkels ao escapamento.

Por fim, como 30 toneladas não boiam naturalmente, foi utilizado um mecanismo chamado de tela de Straussler — homenagem ao seu criador, Nicholas Straussler. Essa tela de lona carregava boias com ar comprimido e, além de fazer o tanque flutuar, se erguia ao redor da torre, evitando que a água do mar entrasse nos canhões e metralhadoras.

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Esse Sherman DD à mostra em Bovington, Inglaterra, exemplifica como o tanque ficava submerso (Hohum/Acervo pessoal)

Sabe a famosa abertura do filme “O Resgate do Soldado Ryan”, na qual alemães causam uma carnificina em soldados que desembarcam indefesos na praia de Omaha? A ideia, em 1944, é que três batalhões blindados chegassem antes no local, enfraquecendo a artilharia alemã e protegendo os soldados. Entretanto, o mar revolto fez com que apenas dois veículos conseguissem atingir o local.

Sem comunicação efetiva e nenhuma possibilidade de recuo, restou aos fuzileiros navais enfrentar de peito aberto os nazistas, na cena imortalizada por Tom Hanks e companhia.

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Essa famosa imagem retrata soldados desembarcando na praia de Omaha, na Normandia. Vê uma mancha preta sobre a areia? É um dos dois Shermans que conseguiram chegar à praia para proteger as tropas. O massacre que se seguiu virou abertura de “O Resgate do Soldado Ryan” (Robert F. Sargent/Franklin D. Roosevelt Library)

Em outras praias do desembarque, entretanto, as coisas correram mais próximas do planejado, e os DDs puderam fornecer apoio às tropas terrestres.

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Na praia vizinha à de Omaha, os DDs cumpriram seu dever (Desconhecido/Domínio Público)

Pau pra toda obra

Além da versão anfíbia, o Sherman teve outras variantes úteis ao Dia D e à Guerra em geral. Uma das mais importantes foi o Crab (‘caranguejo’), que trazia uma extensão frontal com pesadas correntes, que giravam rompendo arames farpados e explodindo minas.

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Os DDs foram usados até o fim da Guerra. Nessa foto, atravessando o rio Reno, cujas pontes haviam sido destruídas pelos alemães em debandada (Sgt. Harrisson/U.S Army)

Feito por ordens de Percy Hobart, o Sherman Crab movia essas correntes através de outro diferencial, que dividia a potência entre a tração e o giro do mecanismo a 142 rpm. Além disso, o Crab carregava sacos de giz e granadas de fumaça, que explodiam periodicamente e marcavam caminho seguro para as tropas.

Mapham, J (Sgt), War Office official photographer.
Mina? Arame farpado? Bobagem para o Sherman Crab. Fazendo jus ao nome, a variante andava a meros 2 km/h (Sgt. J. Mapham/War Office)

Pau ‘pra’ toda obra, os Shermans também serviram como tratores, rolos compressores para pavimentação de pistas improvisadas e até como lança-chamas, substituindo o canhão de 76 mm por uma bomba pressurizada que jorrava napalm.

O papel de Percy Hobart e suas ‘gracinhas’ foi tão grande, que o engenheiro foi, em poucos anos, de motivo de chacota a major-general condecorado pelo Reino Unido, tornando-se Sir Percy Hobart.

Sherman Bastogne
Nada de bustos ou pessoas. O homenageado na simpática cidade belga de Bastogne é o ‘menino’ Sherman, vital para libertar a região das Ardenas (Eduardo Passos/Acervo pessoal)

Aos poucos o Sherman ficou obsoleto e em 1957 os EUA encerraram de vez seu uso. A importância do blindado médio ficou marcada na cultura popular e, ao longo da Europa, é comum ver modelos usados como monumentos à Libertação, em praças e museus. 

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O M4 Sherman apelidado de “Fury” estrela (e batiza, no título original) o filme “Corações de Ferro” (Giles Keyte/Sony Pictures Entertainment)

Famosinho, o tanque ainda foi ‘estrela’ do filme “Corações de Ferro”, de 2014, colocando ninguém menos que Brad Pitt e Shia LaBeouf como coadjuvantes. O longa retrata a tripulação de um Sherman M4A3E8 durante os meses finais da Segunda Guerra Mundial e (sem spoilers) mostra a valentia que fez dessa uma das principais armas da vitória.

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(Arte/Quatro Rodas)
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