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Inteligente e discreto, Miltão foi o herói de Ayrton Senna

O pai do Ayrton Senna foi o maior incentivador da carreira do piloto

Por Charles Marzanasco
Atualizado em 30 nov 2024, 12h08 - Publicado em 5 dez 2021, 08h06
Ayrton Senna abraçando o pai, Milton da Silva.
Ayrton Senna abraçando o pai, Milton da Silva. (Acervo/Quatro Rodas)
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Se há algo sobre o que eu não tenha dúvidas nesta vida, é o fato de a pessoa mais importante na carreira de tricampeão do Ayrton Senna ter sido o pai dele, Milton da Silva, seu Milton ou Miltão, como era chamado.

Convivi com ele enquanto fui assessor de imprensa do piloto, de 1987 até 1994, tendo ainda certo contato depois, por conta de trabalhar com o outro filho, o Leonardo Senna, a partir do início da importação dos veículos Audi para o Brasil.

Junto com a esposa, a dona Neyde Senna da Silva, seu Milton foi um exemplo na educação dos filhos, Ayrton, Leonardo e Viviane.

Mas, falando da influência dele na vida profissional do Ayrton, foi ele que deu o primeiro estímulo ao filho ao construir em sua metalúrgica o primeiro kart do Beco (apelido do Ayrton na família).

Depois, quando viu o talento do menino, seu Milton fez de tudo para que o filho evoluísse participando de corridas nos kartódromos do Brasil, da América do Sul e da Europa. Zeloso, porém, o pai hesitou quando o garoto decidiu partir para o automobilismo, no início dos anos 1980. Seu Milton achava que seria muito perigoso. E era mesmo, bem mais do que hoje em dia.

Mas quando Armando Botelho, seu sócio, conseguiu patrocinadores para o Ayrton correr na Inglaterra de Fórmula Ford, Miltão logo se animou e reconsiderou, voltando a apoiar o filho. A partir daí, o Senna não parou mais como todos nós sabemos, sempre com o incentivo do pai. Tenho convicção de que se o Senna foi o nosso herói, o Miltão foi o herói dele!

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A notícia da morte de Miltão (em 27 de outubro, aos 94 anos) me deixou muito triste e me jogou em uma grande onda de recordações. Ele foi uma das pessoas mais simples das centenas que conheci no meio do automobilismo. Mas também uma das mais inteligentes e discretas.

Jamais me esqueço dele mostrando karts, capacetes e outros itens do Beco para o jornalista Reginaldo Leme, na gravação para o programa Globo Repórter, sob a condição de não aparecer em cena. Foi em 1988, logo depois de o Ayrton conquistar o primeiro título mundial.

Aprendi muito com seu Milton, até no meu trabalho como assessor de imprensa. E recorri numerosas vezes a seus sábios conselhos.

Um deles, foi quando desfiz um acordo com o pai de um piloto que começava carreira na Europa e disse não ter dinheiro para me pagar, como assessor de imprensa do garoto. O acordo celebrado verbalmente era de que ele não pagaria, mas me autorizava a comercializar espaço no macacão como forma de garantir alguma remuneração.

Milton Senna, pai de Ayrton, no GP Brasil de F1.
Foi ele quem construiu o primeiro kart do Beco (apelido do Ayrton na família) (Acervo/Quatro Rodas)
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Óbvio que, no começo, ninguém queria patrocinar o jovem piloto. E só consegui um patrocinador dois anos depois, quando o tal piloto começou a aparecer. Justamente quando consegui o patrocínio, porém, o piloto mandou me avisar que não queria mais os meus serviços. Aquela seria a última temporada.

Tentei conversar com ele, lembrar do acordo feito com o pai, mas não teve jeito. Ou melhor, teve. Liguei para o patrocinador, pedi para suspender a parceria e cancelei uma entrevista coletiva que havia organizado, na véspera de uma corrida.

Passada uma semana, encontrei o Miltão e contei a ele o que aconteceu, lamentando que havia perdido um dinheiro certo. E, como resposta, ouvi: “Você foi perfeito, Charles”. Como assim?, pensei. E ele continuou: “Fez o que deveria ter feito. Esse piloto não é ninguém ainda. Se está te tratando desse jeito agora, imagine o que vai acontecer se um dia ele for campeão mundial?”

Como eu continuava sem dizer nada, seu Milton completou: “Só que tem uma coisa, pode escrever o que estou falando, ele não vai ser campeão mundial nunca”. Dito e feito.

Outro exemplo da rapidez de raciocínio do Miltão ocorreu quando, a partir de 1991, os organizadores do Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1 decidiram que somente a Globo poderia cobrir treinos, classificação e corrida.

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Até essa temporada não havia exclusividade. Ia todo mundo. Eu organizava entrevistas com o Senna atrás dos boxes, era uma bagunça só no espaço apertado, mas sempre deu certo.

Quando expliquei que, com exceção da Globo, as emissoras não poderiam mais cobrir a coletiva do Ayrton para o Miltão, de pronto ele disse que tinha uma ideia e propôs que o piloto desse as entrevistas para todas as tevês no escritório dele, no bairro de Santana, na zona norte de São Paulo.

Assim, depois dos treinos, da classificação e da corrida, o Senna pegava um helicóptero e ia para o escritório, onde os jornalistas o aguardavam. Foi fantástico! Especialmente naquele domingo em que o Senna ganhou a corrida.

Daria para fazer um livro com as histórias do Miltão.

Vivemos outra passagem inesquecível quando o Ayrton começou a correr na McLaren. Por ocasião da corrida no Brasil, coube a mim fazer a divulgação de toda a equipe, incluindo os outros pilotos. Acontece que o novo parceiro de equipe do Senna era ninguém menos que seu rival, o Alain Prost, que havia vencido tantas vezes no Brasil que já era conhecido como o Rei do Rio (naquela época, o GP era disputado em Jacarepaguá).

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Ao ler o press-kit que montei, o Armando Botelho, empresário do Senna, perguntou se eu era assessor do Senna ou do Prost. Levei um susto e tentei explicar que o press-kit era para falar da equipe e eu deveria me ater aos fatos.

Era um texto jornalístico. Ele não quis saber, mandou refazer os releases e voltar no dia seguinte. Saí indignado e no meio do caminho, dirigindo e já longe do escritório, resolvi voltar. Entrei na sala dizendo: “Armando, eu não concordo com você!” Sentei à mesa do empresário, e o pai do Senna, que estava no escritório e assistiu à cena aparentemente surpreso com a minha ousadia, saiu da mesa dele e se sentou a meu lado.

Expliquei tudo de novo: “O Prost é o maior vencedor dos GPs do Brasil, bicampeão de F1, o Senna já ganhou várias corridas, mas ainda não é campeão mundial…” E aí mandei o estalo que tive no carro: “E tem mais, quanto mais a gente elogiar o Prost, maior vai ser a vitória do Ayrton sobre ele”. O Armando ficou meio espantado.

Mas o Miltão não teve dúvida: “Nossa, Armando, o garoto tá certo! Você quer dar responsabilidade para o Becão, e se ele não vencer a primeira corrida…” Não precisei mudar os textos e naquele GP o Senna largou da pole position, mas o McLaren dele apagou na largada, ele voltou aos boxes e trocou de carro!

O Prost começou liderando, na metade da corrida o Ayrton estava 25 segundos atrás dele e fazendo tempo melhor. Ainda faltavam muitas voltas para chegar junto e tentar ultrapassar.

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Mas ele foi desclassificado pela troca de carro. No fim daquele ano, Senna conquistou seu primeiro título de campeão da Fórmula 1.

O seu Milton não foi herói só do Ayrton, foi também meu herói, assim como seu filho dele. Descanse em paz, Miltão! Você foi um grande homem!

Charles Marzanasco
Charles Marzanasco é jornalista e trabalhou nove anos como repórter na QUATRO RODAS (Acervo Pessoal/Divulgação)

Charles Marzanasco

Jornalista, trabalhou nove anos como repórter na QUATRO RODAS, dez anos como assessor do piloto Ayrton Senna
e 25 anos na Audi.

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