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Inteligente e discreto, Miltão foi o herói de Ayrton Senna

O pai do Ayrton Senna foi o maior incentivador da carreira do piloto

Por Charles Marzanasco
5 dez 2021, 08h06
Ayrton Senna, piloto de Fórmula 1 da McLaren, abraçando o pai, Milton da Silva.
Seu Milton: discreto mas sempre presente (Acervo/Quatro Rodas)

Se há algo sobre o que eu não tenha dúvidas nesta vida, é o fato de a pessoa mais importante na carreira de tricampeão do Ayrton Senna ter sido o pai dele, Milton da Silva, seu Milton ou Miltão, como era chamado.

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Convivi com ele enquanto fui assessor de imprensa do piloto, de 1987 até 1994, tendo ainda certo contato depois, por conta de trabalhar com o outro filho, o Leonardo Senna, a partir do início da importação dos veículos Audi para o Brasil.

Junto com a esposa, a dona Neyde Senna da Silva, seu Milton foi um exemplo na educação dos filhos, Ayrton, Leonardo e Viviane.

Mas, falando da influência dele na vida profissional do Ayrton, foi ele que deu o primeiro estímulo ao filho ao construir em sua metalúrgica o primeiro kart do Beco (apelido do Ayrton na família).

Depois, quando viu o talento do menino, seu Milton fez de tudo para que o filho evoluísse participando de corridas nos kartódromos do Brasil, da América do Sul e da Europa. Zeloso, porém, o pai hesitou quando o garoto decidiu partir para o automobilismo, no início dos anos 1980. Seu Milton achava que seria muito perigoso. E era mesmo, bem mais do que hoje em dia.

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Mas quando Armando Botelho, seu sócio, conseguiu patrocinadores para o Ayrton correr na Inglaterra de Fórmula Ford, Miltão logo se animou e reconsiderou, voltando a apoiar o filho. A partir daí, o Senna não parou mais como todos nós sabemos, sempre com o incentivo do pai. Tenho convicção de que se o Senna foi o nosso herói, o Miltão foi o herói dele!

A notícia da morte de Miltão (em 27 de outubro, aos 94 anos) me deixou muito triste e me jogou em uma grande onda de recordações. Ele foi uma das pessoas mais simples das centenas que conheci no meio do automobilismo. Mas também uma das mais inteligentes e discretas.

Jamais me esqueço dele mostrando karts, capacetes e outros itens do Beco para o jornalista Reginaldo Leme, na gravação para o programa Globo Repórter, sob a condição de não aparecer em cena. Foi em 1988, logo depois de o Ayrton conquistar o primeiro título mundial.

Aprendi muito com seu Milton, até no meu trabalho como assessor de imprensa. E recorri numerosas vezes a seus sábios conselhos.

Um deles, foi quando desfiz um acordo com o pai de um piloto que começava carreira na Europa e disse não ter dinheiro para me pagar, como assessor de imprensa do garoto. O acordo celebrado verbalmente era de que ele não pagaria, mas me autorizava a comercializar espaço no macacão como forma de garantir alguma remuneração.

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Milton Senna, pai de Ayrton, no GP Brasil de F1.
Foi ele quem construiu o primeiro kart do Beco (apelido do Ayrton na família) (Acervo/Quatro Rodas)

Óbvio que, no começo, ninguém queria patrocinar o jovem piloto. E só consegui um patrocinador dois anos depois, quando o tal piloto começou a aparecer. Justamente quando consegui o patrocínio, porém, o piloto mandou me avisar que não queria mais os meus serviços. Aquela seria a última temporada.

Tentei conversar com ele, lembrar do acordo feito com o pai, mas não teve jeito. Ou melhor, teve. Liguei para o patrocinador, pedi para suspender a parceria e cancelei uma entrevista coletiva que havia organizado, na véspera de uma corrida.

Passada uma semana, encontrei o Miltão e contei a ele o que aconteceu, lamentando que havia perdido um dinheiro certo. E, como resposta, ouvi: “Você foi perfeito, Charles”. Como assim?, pensei. E ele continuou: “Fez o que deveria ter feito. Esse piloto não é ninguém ainda. Se está te tratando desse jeito agora, imagine o que vai acontecer se um dia ele for campeão mundial?”

Como eu continuava sem dizer nada, seu Milton completou: “Só que tem uma coisa, pode escrever o que estou falando, ele não vai ser campeão mundial nunca”. Dito e feito.

Outro exemplo da rapidez de raciocínio do Miltão ocorreu quando, a partir de 1991, os organizadores do Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1 decidiram que somente a Globo poderia cobrir treinos, classificação e corrida.

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Até essa temporada não havia exclusividade. Ia todo mundo. Eu organizava entrevistas com o Senna atrás dos boxes, era uma bagunça só no espaço apertado, mas sempre deu certo.

Quando expliquei que, com exceção da Globo, as emissoras não poderiam mais cobrir a coletiva do Ayrton para o Miltão, de pronto ele disse que tinha uma ideia e propôs que o piloto desse as entrevistas para todas as tevês no escritório dele, no bairro de Santana, na zona norte de São Paulo.

Assim, depois dos treinos, da classificação e da corrida, o Senna pegava um helicóptero e ia para o escritório, onde os jornalistas o aguardavam. Foi fantástico! Especialmente naquele domingo em que o Senna ganhou a corrida.

Daria para fazer um livro com as histórias do Miltão.

Vivemos outra passagem inesquecível quando o Ayrton começou a correr na McLaren. Por ocasião da corrida no Brasil, coube a mim fazer a divulgação de toda a equipe, incluindo os outros pilotos. Acontece que o novo parceiro de equipe do Senna era ninguém menos que seu rival, o Alain Prost, que havia vencido tantas vezes no Brasil que já era conhecido como o Rei do Rio (naquela época, o GP era disputado em Jacarepaguá).

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Ao ler o press-kit que montei, o Armando Botelho, empresário do Senna, perguntou se eu era assessor do Senna ou do Prost. Levei um susto e tentei explicar que o press-kit era para falar da equipe e eu deveria me ater aos fatos.

Era um texto jornalístico. Ele não quis saber, mandou refazer os releases e voltar no dia seguinte. Saí indignado e no meio do caminho, dirigindo e já longe do escritório, resolvi voltar. Entrei na sala dizendo: “Armando, eu não concordo com você!” Sentei à mesa do empresário, e o pai do Senna, que estava no escritório e assistiu à cena aparentemente surpreso com a minha ousadia, saiu da mesa dele e se sentou a meu lado.

Expliquei tudo de novo: “O Prost é o maior vencedor dos GPs do Brasil, bicampeão de F1, o Senna já ganhou várias corridas, mas ainda não é campeão mundial…” E aí mandei o estalo que tive no carro: “E tem mais, quanto mais a gente elogiar o Prost, maior vai ser a vitória do Ayrton sobre ele”. O Armando ficou meio espantado.

Mas o Miltão não teve dúvida: “Nossa, Armando, o garoto tá certo! Você quer dar responsabilidade para o Becão, e se ele não vencer a primeira corrida…” Não precisei mudar os textos e naquele GP o Senna largou da pole position, mas o McLaren dele apagou na largada, ele voltou aos boxes e trocou de carro!

O Prost começou liderando, na metade da corrida o Ayrton estava 25 segundos atrás dele e fazendo tempo melhor. Ainda faltavam muitas voltas para chegar junto e tentar ultrapassar.

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Mas ele foi desclassificado pela troca de carro. No fim daquele ano, Senna conquistou seu primeiro título de campeão da Fórmula 1.

O seu Milton não foi herói só do Ayrton, foi também meu herói, assim como seu filho dele. Descanse em paz, Miltão! Você foi um grande homem!

Charles Marzanasco
Charles Marzanasco é jornalista e trabalhou nove anos como repórter na QUATRO RODAS (Acervo Pessoal/Divulgação)

Jornalista, trabalhou nove anos como repórter na QUATRO RODAS, dez anos como assessor do piloto Ayrton Senna
e 25 anos na Audi.

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