* Reportagem originalmente publicada em julho de 2010
Para o médico João Reinaldo de Oliveira Abrahão, de 58 anos, girar a chave do Chevrolet Impala 1967 significa bem mais que colocar o confiável motor de seis cilindros em funcionamento. O gesto dá a partida numa verdadeira viagem ao passado, tendo seu pai como protagonista das cenas vivas em sua memória.
“Automóvel nenhum tem validade sem história”, afirma. O Impala foi importado dos Estados Unidos e era a menina dos olhos do comerciante Sócrates Abrahão, que passava horas nos fins de semana totalmente dedicado à limpeza e manutenção do carro. Até que um dia, distraído com o trabalho, foi abordado na porta de sua casa, em São Paulo. Ele não percebeu que se tratava de um assalto. O ladrão, irritado, atirou nele e levou o carro.
O Impala ficou desaparecido por sete anos, até que, em 1983, foi encontrado em Uberaba (MG) e devolvido a João Reinaldo, seu atual dono. “Refiz o automóvel e o deixei o mais original possível”, diz ele. E o retorno do carro proporcionou a volta de uma antiga tradição de família, uma homenagem ao pai: hoje o Impala transporta noivas para a igreja no dia do casamento. Quem pode pagar faz uma doação ao Instituto do Câncer Arnaldo Vieira de Carvalho.
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Para deixar o carro em forma, o médico aproveita o sábado para fazer reparos necessários. Um de seus programas é levar o Impala para passear na avenida Paulista, situação em que o automóvel entra na mira de fotos feitas com celular e ganha até aplausos. “Nesses momentos eu me lembro do quanto era prazeroso passar as férias no banco de passageiro. Gostaria que meus netos também gostassem de dirigi-lo.”
Ao que tudo indica, seu desejo pode ser apenas uma questão de tempo: o carro já foi dado ao filho Lucas, de 27 anos, terceira geração ao volante do Impala.
Feito em casa
Poucos podem se gabar de conhecer tão bem seus carros quanto o engenheiro mecânico Ricardo Prado, de 51 anos. Ainda criança, ele pôde acompanhar de perto cada etapa de fabricação de seu Puma GT 1966. O modelo foi o último a sair de fábrica e feito sob encomenda para seu pai, então gerente de produção da Vemag, Antônio de Pádua Prado Santos.
“Meu pai comprou o chassi, pediu para a empresa realizar algumas alterações nos painéis e o montou na garagem de casa”, diz. “Apesar de ter 8 anos na ocasião, eu me lembro como se fosse hoje. Nós íamos todos os sábados até a fábrica ver como estava o chassi. Depois de algumas semanas veio a recompensa.”
Somente em 1975, o pai resolveu aposentá-lo. Por um triz o carro não foi vendido. Assim que passou no vestibular, o então aspirante a engenheiro desmontou o Puma por inteiro e ajustou cada peça, deixando o automóvel original e com disposição de sobra para participar de ralis de regularidade. Mas são as recordações de infância os momentos mais marcantes.
“No caminho para a escola, eu e meu irmão pedíamos para meu pai acelerar como se fosse um F-1”, afirma. “Era engraçado, meu pai não admitia um rival Volkswagen na pista ao lado e sempre acelerava o Puma para vencer o opositor. Na fase adulta, o carro era motivo para a gente discutir seus detalhes. Era uma dedicação tal qual a um animal de estimação. Meu pai deve se orgulhar do cuidado que tenho com sua conservação.”
Com um perfil menos esportivo que o Puma de Ricardo Prado, um antigo trabalhador goza, merecidamente, de um descanso reparador. Em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, um Ford De Luxe 1938 é patrimônio da família Zanatto há 60 anos. Hoje, sob os cuidados do bisneto Elcio Zanatto Júnior, o Juninho, de 26 anos, o carro está parado, à espera de reparos, para que volte à boa forma dos tempos em que seu bisavô, Antônio, parou de dirigir e arrendou o veículo para ser táxi, na década de 60.
O Ford foi herdado por seu avô José, mecânico. Esse ofício, já na terceira geração, também foi um elo forte na família. Quando o carro quebrou, na década de 90, filhos e netos juntaram-se com o objetivo de restaurá-lo. “Depois que fizemos a reforma, meu avô registrou o automóvel no nome dos quatro filhos para dificultar a venda e preservar a memória do pai”, diz Juninho.
O carro é quase um personagem da cidade. A cada jogo da seleção brasileira, o avô dirigia o automóvel pelas ruas de Ribeirão Preto, com o objetivo de dar sorte, uma tradição. O Ford De Luxe atuou como um relações-públicas e ajudou a oficina da família a se tornar um ponto de referência. “Os clientes sempre perguntam pelo carro”, diz ele.
E se o carro for vendido e não der para voltar atrás na decisão? Foi o que quase aconteceu com Sérgio Fernandes Meirelles, de 57 anos, comerciante de Belo Horizonte (MG). Um Ford 1935, de quatro portas, era do avô, passou para seu pai e veio parar nas mãos de Sérgio. “Em 1976, não tínhamos mais espaço na garagem e resolvemos vender o carro para um colecionador, pois estava se estragando.”
O Ford passou dez anos esquecido pelo novo dono em um galpão, mas não pelos antigos proprietários. “Eu e meu irmão resolvemos trazer o automóvel de volta à família. Depois de muita insistência, trocamos um Plymouth 1937 pelo automóvel que pertenceu a nosso avô e pai. Não podia deixar um símbolo tão importante da minha família trancado em um galpão.”
Para recuperar o tempo perdido, o Ford hoje recebe muito carinho, ou melhor, manutenção e limpeza, e ostenta uma placa preta para muitas visitas a encontros de carros antigos. “Não vendo ele por nada.”
Dupla estradeira
Quase contemporâneo do Ford dos Meirelles é o LaSalle 1945 do advogado José Cândido Muricy Neto, de 75 anos. No entanto, o LaSalle não quer saber de descanso. Os dois – carro e proprietário – saem para viagens de longos períodos e muita quilometragem. “Já percorri 10.700 km pela América do Sul, de Mendoza a Santiago, passando por Bariloche e Punta del Este”, afirma.
A receita para tamanha disposição e longevidade mecânica, segundo o dono, é manter um diário de bordo com um histórico mecânico. “Meu pai comprou o carro após o término da Segunda Guerra. Desde criança eu ajudava a consertá-lo”, afirma Muricy.
O gene automotivo também se mostrou dominante na família Cury. Os irmãos Ricardo, Fernando e Ana Paula herdaram do pai não apenas a paixão por carros antigos, mas também um exemplar cada um. O empresário Ricardo, de 46 anos, ficou com um Ford 1939 que foi guiado pelo avô e, depois, pelo pai, o comerciante Nicolau.
Também empresário, Fernando, de 45, não sossegou até conseguir uma placa preta para sua Rural Willys 1972, que era de seu pai. A designer Ana Paula, de 41, caçula, ficou com uma Variant II, que era especialmente cuidada para ela. “Ele não gostava de vender carro. Comprava um novo, mas não vendia o antigo”, afirma Ricardo.
Como era o filho mais velho, Ricardo ficou com o automóvel que era do avô. O filho do meio, Fernando, gostava de roubar a chave da Rural para uma voltinha. Ao conquistar a placa preta, um misto de felicidade e saudosismo o contagiou. “O meu pai gostaria, se estivesse vivo. Era como se estivesse dedicando aquilo para ele.”
O que o pai não imaginaria é que Ana Paula fosse receber tantas abordagens no trânsito. Paquera? “Que nada. Os motoristas só me param para perguntar o ano do carro e elogiar o estado de conservação”, afirma, em tom de piada.