Os perigos (e o teste de avaliação) do sono ao volante
A sonolência e fadiga ao volante podem ser tão perigosas quanto o álcool
“O dia 26 de setembro de 2003 vai ficar marcado para mim. Moro em Carapicuíba, em São Paulo, mas trabalhava no Vale do Paraíba. Acordava sempre às 4h30. Dirigia 150 quilômetros para chegar ao trabalho, que começava às 7 da manhã. Saía às 17h, seguia para São Paulo e guiava mais 150 quilômetros, para dar aulas à noite.
Naquela sexta-feira, estava com muito sono. Lembro que passei pelo pedágio e abri as janelas do carro, com o objetivo de evitar a sonolência. Para não ouvir o barulho dos carros, coloquei protetores auriculares. De repente, pensei: onde estou? Achei que estava morto. O ambiente estava esfumaçado (pelo gás do airbag) e os meus olhos, embaçados, pois os óculos tinham caído.
Bati na traseira de um caminhão baú e o motorista veio em meu socorro. Notei que estava na Via Dutra, no quilômetro 188. Eu dormi ao volante, por volta das 18h15. Fiquei quatro dias internado e um bom tempo sem dirigir. Hoje estou aqui para contar a história. Tive muita sorte.”
O depoimento é do engenheiro de produção Edson Seiji Akasaka, 53 anos, casado, três filhos, que escapou de uma tragédia. Durante a entrevista, ele repetiu a palavra sorte mais de uma vez. E relatou a experiência com alguma leveza, intercalada com a seriedade de quem passou por um susto muito grande.
No dia do acidente, Edson assumiu uma atitude tão perigosa quanto comum à maioria dos motoristas. Ao sentir sono ao volante, em vez de parar para dormir, o engenheiro achou que poderia enfrentar o percurso. Para piorar a situação, fazia muito tempo que ele estava acordado.
Depois de 19 horas de privação de sono há diminuição de desempenho equivalente à observada em indivíduos com teor alcoólico no sangue de 0,70 g/l (aproximadamente igual a seis copos de cerveja ou três de vinho para um homem de 90 kg), segundo dados da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O sono dá pistas de que está chegando: a pessoa se torna mais irritada que o normal e há quem fique quieto ou bastante agitado. Outros sintomas de sonolência são distúrbios visuais, bocejos seguidos, dificuldade em se manter alerta e concentrado em tarefas.
Estatísticas mundiais mostram que entre 26% e 32% dos acidentes de trânsito são provocados por motoristas que dormem na direção. Eles são responsáveis por índices entre 17% e 19% das mortes no local do acidente, de acordo com Marco Túlio de Mello, coordenador do Centro de Estudo Multidisciplinar em Sonolência e Acidentes da Unifesp e chefe da disciplina Medicina e Biologia do Sono.
Os números foram obtidos em pesquisa da Universidade de Gênova, na Itália, já que no Brasil não há dados sobre o assunto. “Motoristas com distúrbios do sono correm duas a três vezes mais riscos de se envolver em acidentes. Quando tratados, a redução é de 70%”, afirma Mello.
No Brasil, mais de 50 mil pessoas morrem em acidentes de trânsito a cada ano. Dados da National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA) indicam que nos Estados Unidos ocorrem anualmente cerca de 100.000 acidentes, sendo 1550 fatais, apenas em decorrência de motoristas que dormem ao volante. Pesquisas da Austrália, Inglaterra, Finlândia e de países da Europa apontam o sono ao volante como causa de 10% a 30% dos acidentes.
O risco de acidentes aumenta não no horário de maior trânsito, mas naquele em que o ser humano tem um declínio na temperatura corporal, afirma Marco Mello, da Unifesp. Isso ocorre entre 12h30 e 14h e das 22h às 6 da manhã, sendo que o período crítico fica entre 3h30 e 5h30. “Com a temperatura corporal baixa, começamos a liberar melatonina, que induz ao sono.”
Embalo
Para não sentir sono ao volante, o ideal é dormir de maneira regular e habitual, afirma o diretor do Departamento de Sono da Associação Brasileira de Medicina no Trânsito (Abramet), Ademir Baptista Silva. “O próprio ato de dirigir pode ser monótono: pistas unidirecionais e o conforto do carro ajudam a embalar o motorista”, diz.
Quem está sem dormir sente isso ao parar. “A falta de sono é cumulativa e, dependendo do caso, é preciso até um mês para colocá-lo em dia. Toda vez que o sono é inibido, ao lavar o rosto ou tomar um café, ele volta”, afirma Silva. A única solução é parar de dirigir.
Se você se identificou com o tema, tem dormido pouco e precisa enfrentar estradas, o diretor do Laboratório do Sono do Instituto do Coração (InCor), Geraldo Lorenzi Filho, recomenda: “Coloque um despertador para os próximos 15 minutos, quando decidir descansar. Não pode dormir mais do que isso, ou vai entrar em sono profundo e isso atrapalha muito. O motorista pode acordar com um pouco de tontura. Após o cochilo, saia do carro, lave o rosto e tome um café”, diz, apenas como paliativo. “Também é bom investigar se tem apnéia, que fragmenta o sono, principalmente dos homens entre 30 e 60 anos”.
A Qualidade do sono
Com base nos estudos do Instituto do Sono da Unifesp, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) publicou em fevereiro de 2008 a resolução 267, que determina a inclusão de exame de distúrbios do sono no processo de habilitação de motoristas das categorias C (caminhão), D (ônibus) e E (carreta).
De acordo com Marco Mello, que participou do estudo encaminhado ao governo, seria impraticável exigir que todos os motoristas brasileiros, ao tirar ou renovar a carteira nacional de habilitação (CNH), passassem pela avaliação quanto à Síndrome de Apnéia Obstrutiva do Sono (Saos).
“No Brasil não há muitos locais para a realização do exame de polissonografia, que investiga o problema.” A critério médico, o candidato poderá ser aprovado temporariamente ou ser encaminhado para avaliação médica específica e realização de polissonografia. “Nas grandes capitais, esse exame é coberto pelo SUS [Sistema Único de Saúde] e pelos planos de saúde.
A nossa expectativa é que 10% dos motoristas que renovam anualmente a habilitação tenham de realizar o exame. Se for detectada a tendência ao distúrbio, ele pode receber uma carteira provisória e fazer tratamento para depois obter a definitiva.”
Teste do sono
Estudos mostram que, depois de 19 horas acordado, o motorista tem o desempenho comprometido. Para comprovar isso na prática, convidamos a fisioterapeuta Flávia Baggio Nerbass, 26 anos. Usamos um simulador de direção defensiva que pertence ao instrutor Luiz Fonseca, que trabalha há 32 anos ministrando cursos sobre o tema.
Também tivemos a colaboração do Laboratório do Sono do Instituto do Coração (InCor), que emprestou o Psychomotor Vigilance Test (PVT) – um aparelho que mede a reação simples a um estímulo visual.
Flávia dirigiu no simulador antes e depois do plantão de 12 horas em um hospital de São Paulo e fez o teste com o PVT, de duração de 10 minutos, com mais de 160 estímulos visuais. Ele mostra quanto tempo uma pessoa leva para reagir à mesma tarefa.
Percurso (duração de 5 minutos) – Flávia passou por dez semáforos, dez cruzamentos, seis conversões à esquerda e duas à direita. A velocidade média do trecho é de 35 milhas/h (56 km/h) e 30 milhas/h (48 km/h). O software é americano e, segundo Luiz Fonseca, baseado em velocidades usuais em acidentes de trânsito.
Ranking de erros antes do plantão (dia 1º, às 17h35) – Não checou o espelho para sair com o carro (perdeu 8 pontos). Não sinalizou para trocar de faixa (perdeu 5 pontos).
Ranking de erros depois de 19 horas acordada (dia 2, às 7h50) – Flávia quis ser cuidadosa ao parar em um semáforo, mas a tática não deu certo e ela passou no momento em que o sinal fechava (perdeu 30 pontos). Passou pelo cruzamento em velocidade alta (advertência). Não sinalizou adequadamente para trocar de faixa (perdeu 5 pontos). Parou o carro em cima da faixade pedestre (menos 8 pontos).
Dificuldades
No primeiro dia que fez o teste,às 17h35 do dia 1º de julho, Flávia fez a simulação para efeito de aprendizado. Ela se saiu bem (veja ranking). No segundo dia, às 7h50, após trabalhar, ela começou dirigindo com tranqüilidade, mas, apesar de estar 19 horas acordada, estava atenta: sabia que era avaliada e dobrou a atenção.
“Meu pé está mais pesado”, disse, acelerando mais. “Aqui estou dirigindo em um computador, mas não me sentiria segura para pegar uma estrada. Estou com sono.”Ela quase não conseguiu frear ao avistar a placa de “Pare”. Em um cruzamento, quase parou em cima da faixa. No fim do percurso,a atitude mais perigosa: trocou de faixa como se estivesse bêbada.
Teste de reação
Flávia fez o teste do PVT no dia 1º às 17h19. Respondeu a 179 testes de estímulo e teve três lapsos. No dia seguinte, após o plantão, passou pela mesma avaliação, mas com 161 testes válidos, e teve 110 lapsos. A média de tempo para responder ao estímulo dobrou.
“Ela deixou de reagir a um estímulo quando deveria. Significa que o risco de sofrer acidentes era muito maior e que ela estava sonolenta o suficiente para bater o carro. A privação de sono fez com que Flávia tivesse uma piora significativa e o desempenho é semelhante ao de uma pessoa bêbada”, disse Cláudia Moreno, da Faculdade de Saúde Pública, que analisou o teste.
Escala de sonolência
Este questionário é usado para a obtenção de CNH categorias C, D e E. Quer ver como está seu grau de sonolência? Então responda: qual é a probabilidade de você cochilar ou adormecer nas situações a seguir, em contraste com estar se sentindo simplesmente cansado?
Ainda que você não tenha feito, ou passado por nenhuma dessas situações, tente calcular como poderiam afetá-lo. Use a escala abaixo para escolher o número mais apropriado para cada situação:
0 = nenhuma chance de cochilar
1 = pequena chance de cochilar
2 = moderada chance de cochilar
3 = alta chance de cochilar
Sentado(a) e lendo ( )
Assistindo à TV ( )
Sentado(a) em lugar público (ex.: sala de espera) ( )
Como passageiro(a) de trem,carro ou ônibus, andando por uma hora sem parar ( )
Sentado(a) e conversando com alguém ( )
Deitando-se para descansar à tarde, quando as circunstâncias permitem ( )
Sentado(a) calmamente após o almoço sem álcool ( )
Se você tiver carro, enquanto pára por alguns minutos em virtude de trânsito intenso ( )
Total ( )
Resultados
0-6 pontos – não apresenta sonolência excessiva. O sono é de boa qualidade e com duração suficiente para sua restauração física.
7-10 pontos – pode apresentar sonolência caso ronque ou não durma bem. A pontuação indica situação-limite entre apresentar ou não sonolência excessiva.
11-14 pontos – indica sonolência leve. As causas mais comuns são o sono com duração e qualidade insuficientes e problemas respiratórios, como o ronco e as apnéias.
15-19 pontos – sonolência moderada. As causas mais comuns são as apnéias do sono.
Mais de 19 pontos – sonolência grave. Existe risco de acidentes, portanto, recomenda-se não dirigir ou operar máquinas e não ingerir álcool ou sedativos.