A frase “a simplicidade é o último grau da sofisticação”, atribuída a Leonardo Da Vinci, faz sucesso no Linkedin, mas foi o que me veio à mente em meu primeiro contato com o Rolls-Royce Spectre. É o primeiro carro elétrico da marca, mas capaz de dar uma aula sobre tradição às marcas novatas.
É uma realidade diferente. A própria Rolls-Royce admite que seus clientes costumam ter sete carros na garagem (que, no caso dos brasileiros, geralmente fica em Miami) e mal rodam 5.000 km anualmente. Para estes clientes o luxo está em não precisar se preocupar. Nem com a autonomia, pois a bateria de 102 kWh é suficiente para rodar 530 km sem parar.
É uma bateria que só tem espaço no carro por seu chassi, em alumínio, ter sido projetado do zero. A central multimídia é emprestada pela BMW (dona da RR) , porém toda simplificada: há menos telas, menos configurações e nem sequer há Android Auto ou Apple Carplay. Mas permite o acesso a uma plataforma de concierge a qual apenas proprietários de carros da marca têm direito.
No meio do painel, estão mantidos os comandos tradicionais do ar-condicionado. Para o controle de temperatura, arrasta-se uma chave e para ajustar a velocidade do ar é necessário girar outro comando acima. O fluxo de cada uma das saídas de aço inox é controlado por comandos de empurrar e puxar, que lembram afogadores. Tudo é feito como décadas atrás.
Qualquer geração de motoristas saberia utilizar um Rolls-Royce, mas minha avó provavelmente sugeriria passar óleo de peroba na grande parte do painel feita de madeiras nobres escolhidas e trabalhadas artesanalmente.
O quadro de instrumentos é digital, mas vai pelo mesma lógica. Imita os grafismos dos mostradores analógicos para reserva de força (é tradição ter isso em vez de conta-giros), velocímetro e, neste caso, indicador de carga e autonomia. O máximo que pode ser feito é mudar o fundo do velocímetro de preto para branco. O volante tem comandos do som, com projeto da própria Rolls-Royce.
O Spectre surpreende antes de entrar. As portas têm 1,5 m de comprimento e são pesadas o suficiente para terem assistência elétrica no movimento. Mas o barato é sentar-se nas poltronas e comandar o fechamento da porta do motorista apenas pisando no freio, ou pelos botões no console. Na falta de portas traseiras, os guarda-chuvas estão nos para-lamas dianteiros. Esta é outra tradição propagada.
Nossa preocupação usual é não chamar de couro materiais sintéticos (uma lei federal de 1965 proíbe o uso do termo “couro sintético” e uma entidade fiscaliza isso). Claro, o couro é natural e vem de animais criados em altitude para evitar marcas de insetos. E o assoalho é todo forrado com um carpete de lã fofo o suficiente para afundar as mãos ou a sola do sapato.
Na falta do teto solar, teto e portas somam quase 5.000 pontos de fibra ótica que à noite emulam uma constelação. E é ótima sua observação quando se está no banco traseiro, que também é muito confortável. Pudera: este fastback tem 5,45 m de comprimento e 3,21 m só de entre-eixos.
Mas os duas-portas como este costumam ser comprados por quem realmente deseja dirigir seu Rolls-Royce. Fiquem tranquilos: não há sistemas de condução semiautônoma, ainda imperfeitos na visão da fabricante britânica.
Navegando em um lago tranquilo
Nos últimos 117 anos, a Rolls-Royce fez o mais difícil: transformou seus motores V12 em joias mecânicas extremamente suaves e silenciosas. Nada disso é problema para um motor elétrico. Mas como mover esse colosso com 2.975 kg com dois motores elétricos que somam 585 cv e 91,8 kgfm sem ser bruto? Dosaram a entrega de força. E mesmo assim chega aos 100 km/h em 4,2 segundos – só 0,3 s mais lento que um BMW M3.
Só não espere pelas reações de um BMW Motorsport ou mesmo de um BMW, porque as sensações proporcionadas são completamente diferentes. É um carro com rodar assustadoramente suave, que transparece seu tamanho mas tem direção leve e de reações rápidas, ajudadas pelo sistema que esterça as rodas traseiras.
Andando pelas ruas de Greenville, na Carolina do Sul (EUA) a sensação foi a de estar navegando em um lago tranquilo em um dia sem vento, sendo o volante enorme e fino praticamente um timão. Emendas de asfalto e desníveis no asfalto chegavam à cabine como pequenas marolas. É uma suavidade quase perturbadora.
Por trás disso está um isolamento acústico extremamente eficiente e uma suspensão adaptativa que, em vez de priorizar a precisão da direção, opta pelo conforto. Me senti flutuando, mas a intenção da suspensão Planar é fazer o motorista se sentir em um tapete voador. Vai um pouco além de ser uma suspensão pneumática com amortecedores adaptativos.
A inclinação da carroceria, a aceleração, a posição dos pedais, sinal de GPS, as imagens das câmeras à frente do carro e outros 15 sinais de sensores são interpretados para os ajustes feitos em tempo real, que podem se estender ao desacoplamento das barras estabilizadoras. O objetivo? Dar liberdade às rodas para absorver determinados impactos e impedir que a carroceria balance. E ela não balança. Se for uma curva, as barras voltam a acoplar e os amortecedores externos serão enrijecidos.
É verdade, certas complexidades deixam a Rolls-Royce orgulhosa. É por isso que a marca é o que é: a experiência que seus carros proporcionam é completamente distinta. E essa aura segue viva mesmo em sua primeira incursão entre os carros elétricos.
Ficha técnica – Rolls-Royce Spectre
Preço: 420.990 dólares
Motor: elétricos, diant. e tras., 585 cv, 91,8 kgfm
Câmbio: aut., 1 marcha, tração integral
Suspensão: Duplo A (diant.), Multilik (tras.)
Direção: elétrica Rodas e pneus: 295/35 R23
Freio: disco ventilado (dianteiro e traseiro)
Dimensões: comprimento, 543,5 cm; largura, 208 cm; altura, 155,8 cm; entre-eixos, 321 cm, 2.975 kg
Desempenho*: 0 a 100 km/h, 4,2 s; velocidade máxima, 250 km/h
Bateria*: 102 kWh (liquido); Recarga máxima, 195 kW; Autonomia, 530 km*Dados de