Digamos que você voltou no tempo. Está em 1969 e só tem 60 dias para transformar seu Fusca 1300 num foguete para andar na frente de Ford GT40 e Lola T70 – dois dos mais respeitados carros da categoria esporte-protótipos de então.
Sem a ajuda mágica de alguém como Jeannie – do seriado de TV Jeannie É um Gênio, um hit dos anos 60 –, isso pareceria impraticável. Mas não foi assim que pensaram o piloto Wilson Fittipaldi Junior e o engenheiro Ricardo Divila. Eles encararam o desafio e conseguiram o que parecia impensável.
O Fusca pilotado pelos irmãos Emerson e Wilsinho obrigou os ”figurões” importados a engolir poeira na pista de Jacarepaguá. Depois de se classificar para a largada em segundo lugar e andar meia hora na frente dos monstros, o VW acabou quebrando o câmbio e saindo da prova.
No entanto, já havia roubado a cena, humilhado os rivais e deixado uma marca na história do automobilismo nacional.
Naquele final dos anos 60, Emerson já corria na Europa e aproveitaria o intervalo das temporadas de Fórmula 3 para participar de algumas provas realizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro.
“Estávamos sem carro para competir”, diz Wilsinho. “Tínhamos começado um projeto e o Ricardo estava trabalhando no protótipo que levaria mecânica do Alfa GTA. Mas não ficaria pronto a tempo.”
O carro levaria mais de ano para chegar às pistas e dois meses era o prazo que o calendário das provas dava aos irmãos Fittipaldi para providenciarem um bólido competitivo.“Além de rápido, com boa aceleração, o carro tinha que ser barato, pois não tínhamos dinheiro para trazer um GT da Europa.”
Essa limitação praticamente encaminhou a escolha do motor para um Volkswagen.“Tínhamos tudo o que havia dessa mecânica e, naquela época, éramos os únicos no Brasil a produzir os kits 1600”, diz Wilsinho.
O maior motor VW na época era o 1300. Nosso 1600 preparado, com taxa alta, comando bravo, carburação Weber 48 e coletores especiais, chegava ao redor dos 130 cavalos – um bom número para a época. Mas ainda estava longe da relação peso/potência à altura dos GT.
“Pensamos então num motor 2 litros. Ponderei que, para atingir essa cilindrada, teríamos que mudar curso de virabrequim, camisas, pistões – e com tudo isso o bloco não agüentaria. Ia ser explosão na certa.”
Oito cilindros
Diante do desafio, com a ousadia própria dos jovens de pouco mais de 20 anos, alguém sugeriu: “E se, em vez de um, fossem usados dois motores?”
Depois do espanto geral, veio a lembrança do Auto Union construído antes da Segunda Guerra Mundial. O carro foi feito para quebrar o recorde de velocidade numa das novas Autobahn, idéia incentivada por Hitler para ser usada como propaganda. O carro tinha dois motores V8, centrais, com virabrequins simplesmente aparafusados um ao outro.
Pois a mesma idéia foi aproveitada pela equipe Fittipaldi. Mas, para evitar contragolpes ou vibrações de um motor refletindo no outro, uma junta de borracha fazia a intermediação.
Os escapes foram todos reunidos numa só saída, o que produzia um ronco “ma-ra-vi-lho-so!”, nas palavras de Wilsinho. “Aquilo urrava que era uma beleza, parecia um Porsche.”
O resultado dessa junção foi um motor de oito cilindros contrapostos que desenvolvia de 250 a 260 cavalos. Para empurrar um Fusca com 500 quilos, seriam 2 quilos por cavalo, uma relação peso/potência na medida para encarar os esporte-protótipos, que pesavam entre 800 e 900 quilos com motores de 400 a 450 cavalos.
Enquanto era discutida a montagem do motor, outra questão igualmente urgente era estudada por Wilsinho, Divilla e Nélson Brizzi, um dos papas dos motores de competição daqueles tempos: como desenvolver um chassi em tão pouco tempo?
Dessa vez a iluminação veio da experiência na construção dos monopostos de Fórmula V (que utilizavam mecânica Volkswagen e integravam uma categoria de entrada no automoblismo de competição).
Um chassi de Fusca foi serrado logo atrás do piloto. Dali para trás, foi ancorado um chassi tubular na plataforma original do carro. Nele foi montada uma suspensão traseira dos Fórmula V, com semi-eixo, molas espirais e amortecedores telescópicos. Na dianteira foi mantida a suspensão original do Fusca.
Freios do Porsche histórico
Para segurar a cavalaria reunida, tiveram de recorrer aos freios de um antigo Porsche Spyder, que jazia abandonado numa oficina. Mas não era um Spyder qualquer, se é que se pode falar assim de um Porsche. Segundo Wilsinho, o nobre doador foi o carro pilotado por Hans Stuck, na Gávea, na década de 50.
Dele também foram aproveitados o câmbio de cinco marchas, invertido – pois o Spyder tem motor central –, e a caixa de direção. Dois radiadores de óleo instalados na frente completavam a configuração básica da máquina.
Na hora de embalar aquela ousadia toda, nem todos os problemas tiveram solução planejada. Como, por exemplo, arrefecer a temperatura dos motores se as ventoinhas haviam sido eliminadas para aliviar o trabalho do equipamento?
“Eram oito cilindros para refrigerar. Colocar os oito scoops [tomadas de ar] para fora do carro provocaria um tremendo arrasto aerodinâmico”, diz Wilsinho. Durante muito tempo, procurou-se em vão pela solução. A resposta para o enigma surgiu quando ele estava sentado no banco do piloto, para ver a posição do volante.
Ao olhar para o espaço onde residia o pára-brisa, que ainda não havia sido colocado, mandou: “Ricardo, e se a gente inclinar o pára-brisa e fizer um fundo falso por baixo do teto?” Idéia aprovada, foi feita uma caixa de captação de ar de onde saíam as oito bocas que, por meio de tubos, ventilavam os cilindros.
Havia chegado, enfim, o momento. No dia do primeiro teste em Interlagos, ainda usando pneus finos, os Cinturatto da Pirelli, o carro conseguiu impressionar bem: “Deu para ver que ele empurrava uma barbaridade. A estabilidade era satisfatória, pois motor central sempre dá boa coisa. Quando chegaram os pneus Dunlop de competição e os colocamos nas rodas de 8 polegadas na frente e 10 atrás, aí sim o carro grudou no chão pra valer”.
Wilsinho conta como era pilotar o bimotor, num tempo em que os traçados de Interlagos e Jacarepaguá eram bem diferentes dos dias de hoje: “Nosso carro tinha uma primeira bastante longa, o suficiente para fazermos a Curva do Bico de Pato, a mais travada de Interlagos. No fim do retão, calculo que chegávamos a 220 km/h. O carro andava muito, tinha um tremendo torque. A Curva do Sol nós fazíamos totalmente de lado, controlando no acelerador, pois esse era o jeito de fazer tempo com o carro; esse era o jeito dele”.
No Rio de Janeiro, onde o carro disputou a prova 1.000 Quilômetros de Jacarepaguá, o circuito era mais travado do que é hoje. A reta não mudou, mas o miolo era diferente. Na tomada de tempos, o Fitti, nas mãos do Wilsinho, ficou em segundo lugar. Na frente do GT40 do José Moraes e do Lola T70 do Marcelo de Paoli e só atrás do Alfa T33 do José Carlos Pace, o Moco. “Largaríamos na primeira fila! E ao lado do Alfa!”
Todos atrás de um Fusca
Segundo Wilsinho Fittipaldi, ninguém acreditou naquilo que estava acontecendo. “Foi bem engraçado: trouxeram os melhores carros do mundo e largaram atrás de um Fusca… Eles não gostaram muito, não; ficaram meio invocados”, diz, divertindo-se enquanto recorda.
“Na corrida, como a primeira marcha era longa, o Émerson perdeu uma posição logo na largada. Mas, depois que afinava a primeira, as outras marchas vinham próximas e o carro acelerava que era uma barbaridade. Na quinta volta recuperou a posição e manteve-se em segundo por uma meia hora, mais ou menos, andando sossegado na frente da Lola e do GT40, só permanecendo atrás mesmo do Moco, no Alfa.”
O piloto Lian Duarte foi testemunha do desempenho do Fitti 3200. Participava da corrida ao volante de um Puma com motor preparado de 2.000 cm3. Com ele, Lian chegava ao fim da reta de Jacarepaguá a uns 180 ou 190 km/h. “Mesmo assim, o Emerson me passava feito um rojão.”
A quebra do câmbio do Fitti acabou por tirar de cena o astro daquele espetáculo surreal em Jacarepaguá. Mas, àquela altura, o grande feito do Fusca de dois motores já havia ficado registrado na história. E na memória de quem teve a felicidade de assistir a tão surpreendente desempenho.
* Reportagem publicada na QUATRO RODAS Clássicos de janeiro de 2004