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Opinião: “não falamos nem bem nem mal, falamos o que merecem ouvir”

Na vida, aprendi que algumas palavras devem ser usadas com muito critério em conversas, documentos, reportagens e pesquisas de opinião

Por Paulo Campo Grande Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
4 ago 2024, 19h00
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  • Jornalistas colecionam palavras. Não é uma coleção típica: uma caixa de sapatos com papeizinhos escritos. É uma coleção mental. Palavras que ficam na memória e, quando possível, são usadas. A formação dessa coleção é pessoal. O que nos encanta pode ser a sonoridade, a remissão a algum fato, coisa, memória querida ou os múltiplos significados.

    Uma das primeiras palavras que colecionei foi “viés”. Não lembro quando a ouvi pela primeira vez. Mas, com certeza, eu era criança e foi na casa de meu avô materno, Alfredo, que era um alfaiate de mão-cheia. A casa dele vivia cheia de rolos de pano, tubos de linhas, agulhas, giz, moldes, réguas e tesouras. Havia também uma mesa grande, um manequim e uma máquina de costura. Para quem trabalha com tecidos, ou fazendas, como meu avô dizia, viés é uma tira de pano cortada em diagonal.

    Não sei por que os alfaiates cortam os tecidos em diagonal. Talvez por alguma razão relacionada ao aproveitamento do material ou para conseguir algum efeito visual. Naquela época, eu não tinha esse tipo de curiosidade. Me bastava ouvir a palavra VI – ÉS e desfrutar de sua sonoridade.

    Longe da casa de meu avô, só voltei a ouvir viés no final da adolescência. Foi quando me encantei com a música A Volta do Malandro, do Chico Buarque, no disco Malandro, de 1985. A letra diz: “Entre parangolés e patrões / O malandro anda assim de viés / Deixa balançar a maré / E a poeira assentar no chão […]”.

    No filme Ópera do Malandro, dirigido por Ruy Guerra, essa música toca no momento em que o malandro, interpretado pelo ator Edson Celulari, surge andando assim meio de lado, sorrateiramente, na ponta dos pés.

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    Ilustração Midjourney
    Perguntas às vezes influenciam respostas (Fabio Black / Midjourney/Quatro Rodas)

    Tempos depois me tornei jornalista e aprendi outras acepções da palavra viés – como tendência, orientação –, que devem ser evitadas no jornalismo.

    Quando uma fonte me diz que QUATRO RODAS falou mal de algum carro ou me liga para agradecer por termos elogiado o modelo, sempre digo que nós não falamos nem bem nem mal, falamos o que os carros merecem ouvir. Sem viés! Falaríamos bem ou mal se houvesse intenção de fazer uma abordagem positiva ou negativa – o que não ocorre. Nosso objetivo é entregar ao leitor a informação mais isenta possível, para que ele tenha uma ideia de como é o carro e possa julgar de acordo com suas referências e preferências.

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    Esse critério vale para tudo o que fazemos, incluindo o prêmio Menor Custo de Uso, publicado este mês, e os outros Melhor Revenda, Melhor Compra e Os Eleitos. Todos baseados em pesquisas exaustivas, feitas por nossa equipe e, em alguns casos, com parceiros.

    Na pesquisa de Os Eleitos, a parceria é com os próprios leitores, que manifestam suas opiniões sobre seus carros. As fábricas de automóveis também fazem pesquisas para conhecer a opinião dos consumidores. E sabem o quanto é difícil obter resultados sem viés.

    Sem desmerecer o trabalho das fábricas, feito com certeza com muita competência, quando o consumidor recebe uma abordagem da fábrica, quando ele sabe ou desconfia que seja uma pesquisa de fábrica, ele muda seu discurso – seja porque está feliz com seu carro ou com a fábrica, seja porque está triste. E há ainda os casos em que o entrevistado foi previamente influenciado. Explico. No teste de Longa Duração, já levamos os carros a concessionárias de diferentes marcas, para realizar serviços, e ouvimos diversas vezes os atendentes pedirem para lhes darmos notas boas, quando a fábrica (ou alguém da própria concessionária ligasse). “Oito não serve, hein… Tem de ser nove ou dez! Ok?”, ouvi certa vez.

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    A forma mais institucionalizada desse tipo de influência encontrei na forma de display, colocado na mesa do consultor. O cartaz dizia algo como: “Se alguém da fábrica te ligar querendo saber como foi nosso atendimento, diga que você foi bem atendido e ganhe um brinde”. Não lembro qual era o brinde. Lembro que ri muito internamente. Mas penso que era uma lavagem do carro, algo assim. Hoje fico curioso para saber como a pessoa poderia ganhar e retirar esse brinde. Teria de voltar para casa, esperar a fábrica ligar, como naquelas promoções das rádios: “Se te ligarem, não diga alô, diga Supersom, bom dia!. E, depois de respondida a pesquisa, voltar à concessionária, que teria de acreditar que o cliente fez o combinado.

    Seria mais simples se a concessionária trabalhasse direito, sem precisar de todo esse aparato para se safar de maus resultados na pesquisa da fábrica. Mas o fato é que, ao fazer isso, a concessionária contamina a amostra da montadora, que paga caro pelo estudo.

    As pesquisas da QUATRO RODAS têm a vantagem de ser promovidas por uma entidade neutra, em um ambiente neutro, sem nenhum interesse no resultado.

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    Mês passado, lendo o livro A Escrita – Há Futuro para a Escrita?, do filósofo checo-brasileiro Vilém Flusser, descobri outros pontos em comum entre as palavras e os tecidos. Segundo esse autor, etimologicamente, “a palavra ‘texto’ quer dizer tecido e a palavra ‘linha’, um fio de um tecido de linho”. E “trama” – que o dicionário apresenta como “reunião daquilo que constrói uma narrativa, enredo” – “é um tecido acabado, com fios horizontais e verticais. Imediatamente aumentei minha coleção com mais três palavras: texto, linha e trama.

    Paulo Campo Grande
    (Divulgação/Quatro Rodas)

    Paulo Campo Grande

    Jornalista fala sobre diferentes assuntos, reflexões e memórias que considera interessantes de compartilhar com os leitores.

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