O mais importante em um rali cross-country de longa duração é a consistência. Forçar muito o carro na hora errada pode levar a falhas mecânicas, então é preciso encontrar o equilíbrio entre a habilidade do piloto e a resistência da máquina. A Spinelli Racing e a Mitsubishi vivem seu próprio rali há um ano.
Quando o Rally dos Sertões de 2023 terminou começava o desenvolvimento do primeiro carro brasileiro FIA Ultimate (antiga T1+), capaz de competir na principal categoria das provas de rally raid do circuito mundial.
Precisaram correr contra o tempo sem perder a consistência para o carro ficar pronto até o Sertões 2024, que terá sua largada nesta sexta-feira (23) em Brasília (DF). Conseguiram, mas foi com emoção.
Parte 1
QUATRO RODAS acompanhou o processo de construção da inédita Triton Ultimate Racing ao longo de nove meses, do corte e soldagem dos primeiros tubos aos primeiros testes e acerto do carro às vésperas do Sertões.
No início tudo era aço? Nem tanto. A decisão sobre os principais detalhes, como a carroceria, motor, câmbio, diferenciais e componentes da suspensão já havia sido tomada nos primeiros meses do projeto e foi devidamente contemplada na modelagem digital. Cada ponto de apoio na mesa construída para ser a base do chassi estava previsto na modelagem matemática junto com cada tubo de aço carbono que formaria o primeiro chassi.
Quando a Spinelli se tornou a equipe oficial da Mitsubishi e, juntas, decidiram construir um novo carro, foram atrás de antigos talentos.
O próprio piloto Guilherme (Guiga) Spinelli, hoje CEO da Spinelli Racing, chefiava a divisão de competição da Mitsubishi do Brasil em 2000, quando iniciaram o desenvolvimento da L200 Evolution, já com chassi tubular (antes da matriz da Mitsubishi fazer algo assim), para correr no Rally Dakar.
Esse carro venceu o Sertões algumas vezes – em duas delas, com Guiga pilotando – e teve uma segunda geração em 2010.
Parte 2
O engenheiro chefe do novo carro, Giovanni Godoi, é dessa época. Outro engenheiro da Spinelli, André Bresser, estava na Mitsubishi Racing quando desenvolveram o ASX Racing para correr no Dakar. O técnico Clayton Ananias acompanha as evoluções e criações desses projetos desde 2004. Eles representam os especialistas por trás do carro e da equipe, que também seguiram para o Sertões.
O chassi de aço carbono até se enquadra nas especificações da FIA, mas sua função é garantir as especificações exatas, a posição dos principais componentes e ajudar no desenvolvimento dos moldes de algumas peças, como as articulações da suspensão. Os carros da categoria Ultimate são maiores, com 30 cm a mais nas bitolas, e têm altura e peso mínimos diferentes.
Muita coisa precisa ser validada na prática. Motor, cardã, transeixo, braços de suspensão, cubos das rodas (usinados em alumínio aeroespacial) e discos de freio foram instalados ainda no primeiro chassi. Um câmbio também foi instalado para marcar a posição, mas o definitivo, um Sadev SC924 de 6 velocidades, só chegaria na reta final do projeto.
Esse chassi também recebeu uma primeira carenagem de fibra de vidro, que foi o molde para as peças de fibra de carbono e kevlar, mais leve e resistente.
Parte 3
O chassi definitivo, feito em aço cromo-molibdênio, ficaria pronto dali a dois meses. Por ser mais resistente, pode entregar a mesma rigidez com uma estrutura tubular mais fina.A partir daí, as soluções passavam a ser praticamente definitivas. Porque, na verdade, um carro de competição está sempre em desenvolvimento.
Mudanças, correções e reparos precisam ser facilitados. Tanto que seção dianteira do chassi é removível para permitir que o motor seja perfeitamente encaixado em posição central-dianteira. Para ser removido entre as provas de rali para manutenções, basta ter um braço hidráulico.
Este é um V8 5.0 Coyote, da Ford, que por regra tem todos os seus componentes internos mantidos originais de fábrica. Um restritor na admissão garante o equilíbrio no grid. Neste caso, há 430 cv e 55,6 kgfm a disposição. O que é possível mudar é a resposta do motor, que é gerenciado por módulos Motec.
Parte 4
A confiabilidade coloca tudo em jogo, então muitos componentes são de marcas internacionais também usadas pelas empresas sul-africana, britânica e alemã que fazem carros Ultimate.
É o caso dos oito conjuntos de molas e amortecedores da holandesa Reiger, que, inclusive, podem emular mecânicamente o efeito de uma barra estabilizadora – o regulamento não permite nada eletrônico nas suspensões. Os diferenciais são da inglesa Xtrac e das pinças de freio, da sul-africana PowerBrake.
A inglesa AP Racing forece discos de freio (inclusive, os traseiros são arrefecidos com água por receberem menos vento ao longo das provas) e os pedais e cilindros de freio são da estadunidense Tilton.
Por regra, o para-brisa precisa ser de vidro laminado e foi feito sob medida, com direito ao logotipo da Mitsubishi serigrafado. Conforme o protótipo evoluiu, também ganhou o aspecto de picape.
No caso, a Triton Ultimate Racing já nasce com o design da nova geração da Mitsubishi L200 Triton, com os faróis e lanternas originais da picape que já é vendida na Ásia. É uma forma de confirmar que a nova geração da L200 será lançada e, mais tarde, fabricada no Brasil. Não divulgam as datas, mas a primeira unidade nacional já está pronta.
Feita no lugar certo
A sede da Spinelli Racing fica dentro do Autódromo Velo Città, mais exatamente no mesmo prédio do Museu Velo Città. As áreas de pintura, motores, usinagem e serralheria têm um acervo com todos os carros de competição da Mitsubishi e as principais criações da antiga Souza Ramos Veículos Especiais.
Há uma SR Inca e um raro Ford Escort SR JPS (aquele com faróis escamoteáveis) de frente para a sala onde tubos de aço contorcidos e soldados se transformaram na Triton Ultimate Racing. Uma enorme distração para mim, mas não para a equipe que construiu o carro.
O melhor de tudo é que há uma variedade de pistas off-road dentro do complexo, com trechos de baixa e alta velocidade. Isso foi providencial para finalizar a tempo. Em nosso último acesso ao carro, faltava apenas uma semana para o prólogo do Sertões, etapa inicial que, junto com a Super Prime, define a ordem de largada dos carros.
Chegamos às 10 da manhã, depois de toda a equipe envolvida com o carro, mesmo que eles tenham ficado na oficina até as 5h: passaram a madrugada trocando as engrenagens do câmbio para encurtar as relações, deixando o carro mais ágil. Foi a primeira mudança necessária após os primeiros testes.
Parte 5
A expectativa, agora, era pelo comportamento do Triton Ultimate andando forte na terra, começando pela pista mais sinuosa. Giovanni pôs macacão e capacete para ir de carona percebendo aonde melhorar o comportamento do carro enquanto Guiga, ao volante, passava suas percepções. A poeira impressionou, mas o V8 estava pouco eloquente e era possível ouvir o piloto brigando com as marchas.
De volta à oficina, viram que havia algo errado: o mapa do motor limitava a abertura do corpo de borboletas em 70% e o câmbio não estava bom nas reduções. Enquanto um técnico em Orlando, nos EUA, aplicava um novo mapa para o motor via internet, os mecânicos corrigiram um vazamento no diferencial traseiro, trocaram as molas dianteiras por outras com com menos carga, reapertaram a alavanca de câmbio e modificaram a posição dos dutos e a potência do sistema de ar-condicionado.
Na segunda saída, o carro já ligou com outro ronco. O vigor na mesma pista era outro e era perceptível que Guiga estava se entendendo com o câmbio. De volta, o piloto confidenciou em um canto: “agora está muito bom, mas não posso deixar que eles saibam para continuarem melhorando”.
Mudanças para tirar ainda mais desempenho do motor eram feitas junto com o ajuste fino da célula do câmbio que controla o punta-taco automático, que controla a rotação do motor durante as trocas de marcha. Só faltava isso para garantir uma tarde inteira acelerando no “circuito” mais rápido, que liga baias de gado ao pasto que há dentro da área do Velo Città.
Era o momento de se entender com a máquina. “Está sendo desafiador para mim, como piloto, porque eu nunca havia pilotado um carro assim, com essas dimensões. É mais largo, o pneu passa de 32 para 37 polegadas, tem mais deformação, e o curso de suspensão é 70 mm maior, então a dinâmica do carro é muito diferente e ainda estou tentando entender o comportamento e como as mudanças estão influenciando”, explica Spinelli.
“Ele tem mais rolagem lateral e longitudinal, então em trechos sinuosos é mais nítida essa demora das reações, mas tem mais tração e é possível acelerar mais nas curvas de alta, também copia melhor o piso e pode andar mais rápido”, completa.
O Sertões 2024 começa nesta sexta-feira, 23. O Triton Ultimate Racing certamente já passou por mais ajustes ao longo dos últimos dias e noites. A competição começa Brasília, vai até o oeste da Bahia e retorna à capital do Brasil no dia 31.
Depois disso, a missão será dar continuidade às melhorias para competir no Dakar já no início de 2025 e cumprir a meta de estabelecer esse modelo desenvolvido e fabricado no Brasil no mesmo patamar dos outros. E logo teremos um contato mais próximo com o Triton Ultimate Racing.
Veredicto – É audaciosa e, ao mesmo tempo, promissora essa primeira incursão brasileira na principal categoria do rally raid mundial.
Ficha técnica – Triton Ultimate Racing
- Motor: gasolina, central-dianteiro, longitudinal, 8 cil. em V, 5.0, 32V, 430 cv e 55,6 kgfm
- Câmbio: sequencial 6 marchas, tração 4×4
- Direção: hidráulica
- Suspensão: duplo A (diant. e tras.)
- Freios: discos ventilados com arrefecimento líquido atrás
- Pneus: 37×12.5 R17
- Dimensões: compr., 469 cm; larg., 227,9 cm; alt., 193 cm; entre-eixos, 316 cm; peso, 2.010 kg. tanque, 530 litros
- Equipamentos: 2 estepes, 2 amortecedores hidráulicos, sistema anti-incêndio, ar-condicionado, freio de mão hidráulico