Você está tranquilamente lendo as notícias quando se depara com um aviso de recall envolvendo seu carro.
Aí descobre que ele tem defeitos absurdos, como falhas estruturais que geram risco de o assoalho cair em velocidades acima de 60 km/h e problemas elétricos que podem fazer com que ele pegue fogo.
Ah! Também há risco de as rodas trincarem – todas as quatro.
Parece até piada, mas milhares de proprietários de veículos Mazda no Brasil realmente viveram essa situação em janeiro de 2001 – e isso logo depois do baque sofrido com o anúncio do fim das vendas da marca por aqui, ocorrido dois meses antes.
Acontece que o tal recall absurdo realmente era uma piada, mas foi publicado como sendo uma notícia real. Foi, assim, talvez o primeiro caso de fake news automotiva da imprensa brasileira.
A notícia saiu no site e na edição impressa do tradicional jornal Gazeta Mercantil, especializado em economia e finanças, fundado em 1920 e falecido em 2009.
A história foi a seguinte: a Gazeta Mercantil tinha uma sucursal em Brasília e nela trabalhava um jornalista chamado Aldo Renato Soares, que possuía um 626 GLX 1997 prata.
Ele adorava seu Mazda e todo santo dia chegava à redação rasgando elogios ao carro, além de não perder uma chance de tirar sarro dos colegas que tinham modelos de outras marcas.
Como Aldo era muito falante e piadista, um belo dia os colegas resolveram fazer com que ele provasse do próprio veneno: montaram um fax falso com o aviso de recall e um logotipo da Mazda.
Nele, citavam de propósito alguns defeitos absurdos, e deixaram na mesa dele e de outros jornalistas para que, quando o dono do 626 chegasse, a zoação fosse geral.
Ao ler o fax, o dono do Mazda, um jornalista experiente, logo percebeu tratar-se de piada, pois o aviso do recall não trazia nome do modelo envolvido, ano de fabricação nem números de chassi envolvidos.
Mas, para ter certeza, ligou para um representante da marca, que mantivera uma pequena estrutura no Brasil para serviços de pós-vendas em oficinas independentes.
Aliviado, perguntou quem eram os autores da brincadeira. Todo mundo ao redor deu risada e a história deveria ter acabado ali.
Deveria, mas não acabou, porque um pouco antes disso uma outra jornalista, que não sabia da brincadeira, viu o fax dando sopa em uma mesa e correu para publicar a notícia no site.
A razão: na época os serviços de notícias em tempo real estavam começando a ganhar força e ela já tomara bronca por um site concorrente publicar uma notícia pouco antes dela.
A jornalista passou a considerar que, então, a velocidade era mais importante que a checagem das informações que chegavam às suas mãos.
A nota publicada no site trazia como título “Mazda inicia recall no Japão; assoalho e rodas apresentam falhas”.
A matéria afirmava que “a montadora está chamando os donos de automóveis Mazda para que seja feita a troca do assoalho, que devido a falhas estruturais pode ceder quando o veículo estiver a velocidade superior a 60 km/h”.
“Também haverá a substituição de todo o sistema elétrico para evitar incêndio, além da troca das quatro rodas. A fabricante constatou trincas na liga metálica, produzida na unidade japonesa”, terminava o texto.
Pouco tempo depois o erro foi notado por outros jornalistas da redação e a notícia rapidamente foi retirada do ar. Poderia ter parado aí, mas sabe quando uma coisa tem tudo para dar errado e continua dando errado? Pois é.
Um editor de São Paulo viu o texto no sistema do jornal e acrescentou as informações da fake news da Mazda como complemento de uma matéria sobre um recall da Fiat, esse verdadeiro.
E o texto foi publicado no caderno de automóveis da versão impressa do jornal do dia seguinte, 31 de janeiro de 2001.
A repercussão, é claro, foi enorme, com centenas de clientes procurando os representantes da Mazda e as oficinas autorizadas para entender o que era aquilo – e é claro que ninguém sabia de nada.
Para se retratar, dois dias depois a Gazeta Mercantil publicou uma inédita e quase inacreditável chamada de capa no jornal com a seguinte manchete: “É falsa a notícia de recall na Mazda”.
O texto afirmava que “a Mazda do Brasil foi indevidamente envolvida numa falsa notícia de convocação dos proprietários de seus carros no Brasil”.
“A ficção mencionava defeitos de fabricação que nunca existiram. A Mazda do Brasil recebeu chamados de clientes de todo o País referindo-se a uma reprodução deste equívoco”, seguia a errata na capa.
Nas páginas internas do jornal, uma matéria complementar reafirmava que não havia nenhum recall convocado pela empresa no país e citava sua estrutura de pós-vendas.
Também explicava que “a origem do desastroso incidente foi uma falsa nota à imprensa, adornada com o logotipo da Mazda, que circulou nas redações deste grupo editorial”.
“Os fatos estão sendo apurados, mas, desde logo, a Mazda do Brasil e seus clientes têm direito a um pedido formal de desculpas, o que fazemos agora”, completava a nota.
No fim das contas, todos os jornalistas envolvidos na história tomaram um belo pito dos diretores do jornal, mas ninguém foi demitido – e os proprietários de outros carros Mazda, é claro, respiraram aliviados.
Já Aldo preservou seu 626 até 2012, quando o vendeu para um amigo.
“Foi o primeiro e único carro zero-km que tive. Era um carro maravilhoso. Nunca deu nenhum problema, o porta-malas era do tamanho de uma casa e a pintura parecia a de um carro novo mesmo quando o vendi”, garante ele, ainda hoje apaixonado pelo 626.
Se você gosta dessa e outras histórias envolvendo carros, visite o Miau (Museu da Imprensa Automotiva): seu grande acervo conta essas e outras curiosidades por meio de revistas, fotos, livros e materiais de imprensa especializada.
O museu fica na Rua Marcelina, 108, na zona oeste de São Paulo. O site é o www.miaumuseu.com.br e o telefone, o (11) 98815-7467.
Marcos Rozen
É jornalista especializado em automóveis e fundador do Museu da Imprensa Automotiva.