Saímos em busca de carros usados por até R$ 10.000 – e a maioria era golpe
Carros usados bem baratos no Marketplace do Facebook e na OLX estão fora do mapa, mas mercado está repleto de golpistas

Existe um segmento no mercado de automóveis que não entra nas pesquisas das fábricas, no planejamento das seguradoras e nas metas das financeiras dos lojistas. Ele é composto pelos veículos usados baratos, com preços abaixo de R$ 10.000. Suspeita-se que esse segmento esteja sempre aquecido, porque carros baratos giram rapidamente, como dizem os comerciantes. Mas não há estatísticas.
Os negócios, em sua maioria, são feitos entre particulares. Pouquíssimas lojas trabalham com esse tipo de veículo por conta da margem de lucro restrita, considerando o ônus de garantia obrigatória de três meses pelo Código de Defesa do Consumidor e os impostos recolhidos nesse tipo de modalidade comercial.
Esse mercado quase informal atrai os motoristas com pouco dinheiro para investir em um automóvel e, muitas vezes, pessoas que querem ganhar dinheiro fácil, de forma desonesta.
Depois de ouvir histórias de gente que foi enganada por golpistas, decidimos conferir que mercado é esse. Assim como nos outros segmentos, a internet é a grande vitrine para os negócios. Anúncios de carros baratos podem ser encontrados em todos os sites de classificados de automóveis.

O marketplace do Facebook e o site da OLX são os campeões em número de ofertas, pelo fato de seus anúncios serem de graça e não exigirem cadastros detalhados – o que facilita a vida das pessoas, mas abre uma porta para fraudes (a OLX requer CPF do anunciante e placa do carro. No Facebook basta ser usuário da rede).
O segmento de carros baratos é formado por modelos com mais de 20 anos de idade compactos (como Chevrolet Celta, Fiat Palio, Fiat Uno, Ford Ka, Peugeot 206 e VW Gol); médios (Chevrolet Astra e Ford Escort); grandes (Chevrolet Vectra e Omega) e até importados (Audi A3 e VW Passat). Estes últimos, carros vistosos equipados com câmbio automático, bancos de couro e ar-condicionado, mas vendidos a preços baixos por conta da manutenção caríssima.
No papel de um comprador, iniciamos nossa busca de modelos com preço de até R$ 10.000. O primeiro que nos chamou a atenção foi um Palio 1998 verde que encontramos por R$ 8.900. As fotos mostravam um hatch reluzente, exposto em uma loja de seminovos.
Fizemos contato e a vendedora que nos atendeu forneceu um número de WhatsApp para continuarmos a conversa. Perguntamos sobre o estado do carro. Estava ótimo. Documentação. Em dia. Pedimos desconto de 900 reais, dizendo que pagaríamos o restante, R$ 8.000, parcelado no cartão de crédito (modalidade de financiamento comum nesse mercado). Proposta aceita de imediato.

Solicitamos, então, o endereço da loja e a vendedora nos passou a localização, na cidade de Amparo, no interior de São Paulo. Pesquisamos no Google Maps e descobrimos que o endereço era uma estrada de terra, em meio a propriedades rurais, sem sinal de comércio por perto.
Analisando mais detidamente as fotos do Palio, constatamos que o logotipo da loja (na parede, ao fundo) havia sido desfocado com recursos de edição de imagens. Na foto do perfil, a vendedora aparecia dentro de uma concessionária Fiat. E entre as imagens que mostravam o interior do Palio havia fotos de hatches diferentes: ora com itens como ar-condicionado, ora sem. Encerramos a negociação e denunciamos o anúncio ao site.
O segundo achado foi um Renault Clio vermelho. “Carro de mulher” dizia o texto. Expressão que julgamos querer dizer: “Bem cuidado”. Desta vez, as fotos mostravam o carro em uma garagem residencial, o que, depois da experiência com o Palio, interpretamos como um sinal de boa procedência.
Nosso objetivo era encontrar fraudes, mas também queríamos saber se havia bons negócios a serem garimpados. O preço: R$ 6.800. Entramos em contato, via site, e mais uma vez se tratava de um veículo em perfeito estado de conservação, com todos os opcionais em funcionamento, sem detalhes na lataria. Nas palavras daquela que seria a dona do Clio. Quando perguntamos sobre as condições de pagamento, a moça pediu para falarmos via celular.

O anúncio era da cidade de Vinhedo (SP), cujo código é 019, e o número do celular era de São Paulo, 011. Isso não condenava o anúncio de imediato, mas levantou desconfiança. Fizemos novas perguntas sobre o veículo (tempo com o atual proprietário, serviços feitos) e estranhamos as respostas monossilábicas. Nos deu a impressão de que a moça não conhecia o carro. Sobre o pagamento, ela disse que retornaria no dia seguinte, depois de conversar com o namorado.
No dia seguinte, conforme combinado, o “namorado” nos chamou logo cedo: 8 horas. Explicamos que pagaríamos com uma entrada e a diferença parcelada no cartão de crédito. Sem responder se aceitava nossas condições, de maneira impositiva, o namorado mandou fazermos um pix de R$ 3.000, naquele momento, para segurar o carro, e pagarmos a diferença parcelada no cartão dois dias depois, quando fôssemos buscar o carro.
Quando condicionamos o negócio à vistoria do modelo e dissemos que a entrada e o parcelamento seriam feitos no momento da transferência do veículo para nosso nome, no cartório, o namorado se irritou e falou que não iria mais vender o Clio, desligando o telefone. Outra negociação encerrada e outro anúncio denunciado.

Pesquisamos dezenas de ofertas durante cinco dias, interagindo com 30 anunciantes. Antes mesmo de atingir esse volume, porém, já sabíamos como reconhecer fraudes sem demora.
Os criminosos se comportam quase sempre da mesma forma. A primeira indicação de problemas nos anúncios são fotos que mostram carros dentro de lojas, mas têm anunciantes identificados como particulares – geralmente uma mulher jovem, na imagem do perfil. Nas conversas com os vendedores, eles sempre dizem que os veículos estão em ótimo estado, revisados, bem equipados, pouco rodados, pneus novos, documentação em dia e sem histórico de sinistro ou passagens por leilões. Mas as respostas são sempre curtas, sem fornecer detalhes e os vendedores sempre apressam o comprador a decidir, dizendo haver outras pessoas interessadas, que outro igual àquele não existe no mercado etc.
Golpe do anúncio falso com intermediário
O repertório dos criminosos não se limita a apenas um tipo de golpe. Existem formas mais sofisticadas de ludibriar os incautos, com a ajuda de internet, que assim como beneficia o comércio legal de veículos, cria oportunidades para os trapaceiros.
De acordo com uma pesquisa realizada pelas plataformas ICarros, OLX e SóCarrão, cerca de 5.000 golpes foram aplicados por mês, durante o primeiro semestre de 2022. Destes, 33% compreendiam anúncios falsos, feitos com veículos inexistentes. Mas 65% estavam relacionados a roubo de dados (pessoais e bancários) para serem utilizados em novos golpes, como o do Falso Intermediário, ou também chamado Carro do Primo, como explica o delegado Rodolfo Decarli, do Departamento de Operações Policiais Estratégicas (Dope).
Nesse tipo de crime, o golpista faz um anúncio falso a partir das informações de um anúncio verdadeiro, idôneo, oferecendo o mesmo veículo por um preço mais atraente, entre 60 e 50% da tabela Fipe, segundo a pesquisa ICarros, OLX, SóCarrão. Ou até menos, de acordo com Decarli.
Quando alguém responde ao anúncio, o vigarista entra em contato com o verdadeiro dono do carro se dizendo interessado e reproduzindo as perguntas que a vítima (o cliente bem-intencionado) faz. É como se ele passasse a intermediar a conversa entre os dois. Quando o comprador pede para ver o veículo, o farsante combina com o vendedor a vistoria, dizendo que quer comprar o carro para saldar uma dívida com uma pessoa, a qual é quem irá examinar o veículo. Se a pessoa gostar do carro, diz o golpista, o negócio está fechado.
Se o proprietário do carro não se importar com esse arranjo, o criminoso faz um último pedido: solicita ao vendedor se apresentar como seu primo e não falar em valores, já que se trata de uma quitação de dívida. Na outra ponta, para o comprador, o impostor diz que é seu primo que vai mostrar o carro e que ele não está a par de valores. E, caso goste do carro, o comprador deve apenas fazer o pagamento do sinal já combinado.
Se o golpe funcionar, o comprador fará o pagamento – geralmente, via pix para uma chave aleatória – para o bandido, que desaparece. Um motorista que pediu para não ser identificado nos contou como se envolveu em uma armadilha dessas.

Precisando vender seu carro com urgência, um Honda Civic 2001, ele recebeu a ligação de um interessado (que era um golpista) e concordou em fazer o que o interlocutor pedia: se apresentar como primo e não comentar sobre os valores negociados. “Imaginei que o carro entraria no pagamento da dívida por um valor superior ao que eu estava vendendo ( R$ 20.000) e por isso o comprador pedia discrição”, diz o motorista.
O comprador real fez duas visitas ao proprietário até decidir ficar com o Civic, quando realizou uma transferência bancária, via pix, no valor de R$ 11.000 (para o meliante). A diferença do golpe clássico, neste caso, é que o bandido não desapareceu. Ele falou para o proprietário do Honda ir ao cartório, encontrar com o comprador (futuro dono, conforme a armação), para concretizar a transferência do veículo. Segundo o bandido, sua esposa estaria fazendo a transferência do dinheiro naquele momento.
Já no cartório, enquanto o dono do carro aguardava a confirmação da operação, o comprador lhe disse que já havia feito o pagamento do sinal e foi aí que a verdade veio à tona. Nesse caso o proprietário, normalmente, não chega a concluir a venda enquanto não vê o dinheiro. Mas não pode comemorar ter se livrado da cilada, porque há juízes que atribuem responsabilidade aos vendedores que se passam por parentes dos marginais, devendo assumir as consequências do prejuízo causado ao terceiro.
Golpes não acontecem apenas no segmento de automóveis mais baratos, embora nessa faixa de preço até R$ 10.000 existam muitas fraudes, como constatamos. Mesmo nesse segmento, porém, é possível achar ofertas confiáveis.

Em nossa pesquisa, encontramos vários anúncios, a princípio, insuspeitos. E, em pelo menos dois dos suspeitos que fomos a fundo, se confirmaram seguros. Um deles foi o de um Peugeot 206 1.4 ano 2003, em Indaiatuba (SP). Fomos ver o carro, ele existia e estava em ordem (dentro do que se pode esperar de um modelo com 20 anos de uso). Era exatamente o que o vendedor havia anunciado. O preço? R$ 11.000. O outro foi uma VW Parati 1.0 16v básica em estado razoável de conservação por R$ 10.000, à venda em Itupeva (SP). De qualquer modo, todo cuidado é pouco.
Dicas para se fugir do golpe com carros usados
• Desconfie de preços muito abaixo da média. Vítimas de estelionato são as que acreditam que estão levando grande vantagem no negócio.
• Verifique se o vendedor é o dono do carro (mesmo as lojas são obrigadas a transferir os carros que compram para o nome delas).
• Procure irregularidades nas fotos e nos textos dos anúncios, contradições, imagens manipuladas, nomes de lojas ilegíveis.
• Visite o perfil online do anunciante, veja há quanto tempo ele está comercializando naquele site, se o perfil dele é completo e o que mais ele está anunciando naquele momento.
• Inicie o contato com o vendedor pelo próprio site. Faça perguntas básicas e vá evoluindo a conversa para dados técnicos do veículo (quilometragem, manutenções, manual do usuário, chave reserva, manutenções realizadas ou que precisem ser realizadas) .
• O comportamento de um proprietário real deverá ser natural ao desenvolver um diálogo ao vender seu produto e até sincero nos possíveis problemas a serem sanados no carro, além dos que ele já sanou, manutenções preventivas etc.
• Acredite, carros com mais de 20 anos não são perfeitos, sempre terão algum probleminha, ou detalhe. Carros perfeitos não existem.