O Rali Dakar é uma das competições de automóveis mais duras do mundo. Em 2022, a prova começará já no primeiro dia de janeiro, estendendo-se ao longo de duas semanas, e unirá um pelotão de destemidos conquistadores do deserto por milhares de quilômetros no coração da Arábia Saudita (o mesmo país da edição de 2021, mas agora em terrenos menos rochosos e mais arenosos).
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Como se o terreno em si e a concorrência já não fossem desafios suficientemente grandes, a Audi torna tudo ainda mais complicado ao propor fazê-lo com um carro elétrico – mesmo que ele tenha um motor a gasolina como um gerador para alimentar a bateria.
De onde vêm as “complicações” extras, então, já que há até um gerador? É que as elevadas temperaturas, a extensão das etapas em condições de utilização extremas e a areia do deserto são venenos para qualquer bateria.
“Definir os desafios deste tipo de competição exigiu um enorme esforço de toda a equipe”, disse Lukas Folie, engenheiro responsável pela bateria de alta voltagem da Audi, “até porque não há experiência na utilização de um veículo com este sistema de propulsão numa prova com estas caraterísticas”.
Seja como for, este ousado projeto vem na linha de outras apostas ambiciosas da Audi ao longo das últimas décadas, como relembra Julius Seebach, diretor da Audi Sport: “O sistema 4×4 “quattro” foi revolucionário no Campeonato do Mundo de Ralis nos anos 80, a Audi foi a primeira marca a vencer as 24 Horas de Le Mans com uma motorização eletrificada e, agora, queremos inaugurar uma era no Dakar, desenvolvendo a nossa tecnologia e-tron sob condições extremas”.
Equipe de elite com o “Sr. Dakar”
Para, literalmente, conduzir esta missão, foram selecionadas três duplas de pilotos e co-pilotos de renome e em quem a Audi confia para surpreender nesta sua estreia (oficial, já que em 1985 houve uma participação da Audi França) no Dakar: ao volante dos três RS Q e-tron estarão Mattias Ekstrom (piloto que fez quase toda a sua carreira na Audi, com vitórias no DTM – Campeonato Alemão de Turismos – em 2004 e 2007, World Rallycross e, 2016 e que em, 2021 estreou no off-road na categoria Extreme-E e no Dakar), Carlos Sainz (bicampeão do Mundo de ralis, 1990 e 1992 – e três vezes vencedor do Dakar – 2010, 2018 e 2020) e Stéphane Peterhansel (o “sr. Dakar”, com 33 participações e 14 vitórias no Dakar – seis em motor e oito em automóveis).
O protótipo foi totalmente desenvolvido em pouco mais de um ano e “para isso muito contribuiu a experiência e conhecimento da Audi em várias categorias do automobilismo”, como conta Axel Löffler, designer-chefe do RS Q e-tron.
“É o caso do quadro tubular do DTM (2004 a 2011), do chassi de chapa de aço do rallycross (2017 e 2018) e as monocoques em CFRP (plástico reforçado com fibra de carbono) da categoria LMP (1999 a 2016), do DTM (2012 a 2020) e dos monolugares da Fórmula E (2017 a 2021).
A carroceria também é feita em CFRP, Kevlar e materiais compósitos. Os carros de produção em série também entram no Dakar e, para uma melhor resistência a riscos, foi usado o para-brisas de vidro laminado aquecido do Audi A4, enquanto as janelas laterais são feitas em policarbonato (mais leve). Na direção, piloto e co-piloto sentam-se em bancos de concha de CFRP, cujo design é semelhante ao dos usados no DTM e LMP (a deformabilidade na área do ombro, exigida pelos regulamentos, é uma das poucas diferenças).
Um trabalho para fazer a dois
Diante do piloto, o volante inclui oito botões para acionar a buzina, os limpadores do para-brisas, controles multimídia, o limitador de velocidade, etc, e atrás do volante há uma tela com informações sobre a pressão dos pneus, o sentido da deslocação do veículo e a velocidade atual. Também existem luzes de aviso de falhas no sistema de propulsão ou na bateria, e bússola.
Uma tela central entre piloto e co-piloto oferece dados sobre pressão dos pneus, distribuição da força de frenagem, entre outras informações relevantes. Como o co-piloto tem que menos às instruções de navegação do que em outros tempos (e conta com um “bloco de notas” digital), sobra tempo para ajudar o piloto com uma gestão geral do veículo no meio da parafernália de comandos e monitores.
Na intensa corrida contra o tempo (e com os transtornos gerados pela pandemia e o fornecimento de componentes), a equipe chefiada por Sven Quandt testou o protótipo num total de mais de 2.500 quilômetros sobre terrenos muito exigentes, impondo temperaturas artificialmente altas, um teste que foi superado com ótima nota.
Já os pneus sofreram repetidos danos nos caminhos muito rochosos, um dos triângulos de suspensão cedeu no embate contra uma pedra, uma manga do eixo de transmissão teve que ser substituída, entre outros problemas menores de estragos na carroceria.
Formula E deu uma ajuda
O Audi do Dakar usa os motores elétricos do mais recente carro de Formula E (FE07), mas a bateria foi feita “em casa” (na FE existe um fornecedor único para todas as equipes). Mas é claro que o conhecimento adquirido com a participação, desde a primeira temporada em 2017, na Formula E, tem uma utilidade apenas relativa, porque as exigências que são feitas ao sistema de propulsão serão totalmente distintas no Dakar.
Fazer várias centenas de quilômetros seguidos (com temperaturas próximas dos 40°C) e constantemente puxar o carro para fora da areia colocarão enorme pressão sobre a motorização e, acima de tudo, sobre a bateria, que sofre mais em termos de sobreaquecimento pela resistência da areia ao movimento: “a questão do arrefecimento é muito complexa neste caso e com a tecnologia de baterias que existe atualmente, não é possível criar um carro de competição para o Dakar Rally que seja 100% elétrico”, assegura Folie.
Os eixos dianteiro e traseiro não estão ligados mecanicamente (como é normal nos carros 100% elétricos) e o software da Audi assume a distribuição de torque pelos eixos, criando um diferencial central virtual e livremente configurável, que tem o efeito colateral positivo de poder economizar o peso e o espaço que seriam necessários para veio de transmissão e diferencial mecânico.
A complexidade tecnológica na área de software, sistemas elétricos e eletrônicos não tem precedentes, como deixa transparecer Andreas Roos, diretor do envolvimento da Audi para o automobilismo: “Temos duas unidades de controle central e cerca de quatro quilômetros de cabos no veículo – sem contar com os de alta tensão”. Ele reforça que “existe, por outro lado, um máximo de seis sistemas de arrefecimento (um por cada motor elétrico, um para o conversor de energia, um para o intercooler e um para o ar condicionado)”.
Motor a gasolina, só para carregar bateria
A bateria tem uma capacidade de 52 kWh, pesa cerca de 370 kg e usa células bursiformes, com elevada densidade energética e deterioração lenta, para que o desempenho do RS Q e-tron possa ser consistente ao longo de toda a prova e de cada etapa.
O rendimento total dos dois motores elétricos (um em cada eixo) é de 392 cv (definidos pela regulamentação) mas a capacidade da bateria não é suficiente para assegurar a autonomia nas longas etapas do Dakar – a maior chega a 800 km.
E como nem na mais sofisticada miragem de um oásis existirão postos de recarga em um Dakar, os engenheiros da Audi montaram um motor 2.0 turbo vindo do Audi RS5 do DTM para abastecer a bateria com energia, no seu papel de “extensor de autonomia”, ou como um gerador.
Mas como a sua potência de carga está limitada a 299 cv, em alguns momentos da prova poderá existir um déficit de rendimento no RS Q e-tron caso não seja feita uma gestão muito precisa da interação entre as fontes de energia, principalmente nas etapas mais longas. Isso é especialmente verdade no caso da recuperação de energia, cujo know-how adquirido em Le Mans e na Formula E tem sido muito útil à Audi, mas também ajuda o fato de nas recuperações de energia não existirem as mesmas limitações que se verificam nas acelerações.
Gerenciar energia é tão importante como pilotar
Mas um dos fatores mais problemáticos deste tipo de competição é que as equipes só podem conhecer o trajeto exato de cada etapa 15 minutos antes do início da mesma – anteriormente o itinerário era recebido na noite anterior. Para controlar o fluxo da eletricidade, gerenciar o equilíbrio da energia e manter o desempenho da bateria, os técnicos alemães programaram o software para manter o estado de carga da bateria dentro de determinados limites pré-definidos, dependendo das necessidades de energia.
Se, por exemplo, uma passagem mais difícil por umas dunas de areia mais profundas requer o máximo de energia da parte dos dois motores elétricos, o nível de carga da bateria baixa de maneira controlada porque o conversor de energia (o motor a combustão) não consegue compensar por completo o rendimento máximo dos motores elétricos: “isso é apenas possível durante um período limitado de tempo”, esclarece Lukas Folie.
Folie acrescenta: “numa distância maior há sempre um delicado equilíbrio a ser feito, e temos que reduzir o consumo de energia para que o nível de carga da bateria possa se manter numa faixa utilizável, até porque temos que assegurar que conseguimos chegar ao final de cada etapa”.
Para os pilotos, isso significa uma dupla luta no Audi RS do Dakar: contra os outros concorrentes em prova e pela correta gestão dos fluxos energéticos, as duas totalmente interligadas e interdependentes.
À conquista da “lua”
Na Audi existe uma energia eletrizante em torno do projeto Dakar. Ser a primeira marca de automóveis a vencer neste palco extremo com um carro totalmente movido por energia elétrica é um claro objetivo, mesmo que a estrutura esteja bem consciente de que é difícil que isso ocorra logo neste ano de estreia.
Peterhansel defende que “apesar de não ter havido oportunidade de testar o carro em competição antes do Dakar 2022 a confiança é grande e, se chegarmos ao fim, um lugar no Top 5 será muito positivo”. Quandt alinha pelo mesmo raciocínio, ainda que baixando um pouco a régua, por considerar que “terminar o Dakar já será, em si mesmo, uma vitória”, comparando depois o projeto Dakar com a chegada do Homem à lua: “naquela época, os engenheiros não sabiam realmente o que estava por vir. Não é muito diferente o que estamos agora a viver”.
Por muito que os principais intervenientes no projeto procurem sacudir um pouco da pressão (idealmente gerando baixas expectativas para que depois os resultados sejam sempre superiores), todos os focos vão estar centrados no RS Q e-tron logo no primeiro dia de 2022.
Ficha técnica – Audi RS Q e-tron
Motor: dois elétricos, 392 cv
Gerador: 2.0 turbo a gasolina, potência não divulgada
Transmissão: uma marcha à frente e ré; tração 4×4
Bateria: íons de lítio, 52 kWh
Suspensão: independente, triângulos sobrepostos
Freios (by-wire): discos ventilados (alternância entre hidráulica e regenerativa)
Dimensões: comprimento, 4,5 m; largura, 2,3 m; altura, 1,95 m
Tanque: 300 litros
Peso: 2.000 kg
Velocidade máxima: 170 km/h (limitada por regulamento)
0-100 km/h: < 4,5 segundos (dado de fábrica)