Há uma montadora no mundo que já produziu 5 bilhões de veículos. Só em 2014, foram mais de 250 milhões. Além disso, lança pelo menos 250 novos modelos por ano – cada um custando US$ 1 nos Estados Unidos. É o mesmo preço desde 1968, quando a marca nasceu. E naquele país a garantia é vitalícia.
Os números, impossíveis a qualquer fábrica automotiva, fazem parte do dia a dia da Hot Wheels. Os carrinhos de 8 cm são 64 vezes menores que seus equivalentes reais – daí a escala 1:64.
Quase 50 anos atrás, a Mattel criou a Hot Wheels para concorrer com a inglesa Matchbox.
Na época, a americana já era notória pelas bonecas Barbie, mas não tinha uma marca forte voltada para meninos. Elliot Handler, um dos fundadores da empresa, decidiu lançar uma linha de carrinhos.
Para isso, contratou o designer Harry Bradley – um dos desenhistas de renome da General Motors. Handler queria imprimir um visual realístico aos brinquedos e usou como referência os hot rods, que, na época, eram famosos na Califórnia.
Assim, os Hot Wheels nasceram com pinturas vistosas, dianteira rebaixada e eixo traseiro elevado.
Já no ano de estreia, a linha com 16 modelos foi um sucesso absoluto. Cerca de 16 milhões foram vendidos. Conhecida como Sweet Sixteen, hoje a coleção vale uma pequena fortuna, custando mais de US$ 1.000 cada um.
Um deles, o Corvette, foi apresentado ao mundo antes de a GM lançar o carro real. E, em 1969, o catálogo cresceu de 16 para 40 modelos.
Carrinhos 1:64 não eram novidade, mas a empresa tinha como diferencial o design lúdico (não reproduzia um carro real) e a proximidade com as pistas – os esportes a motor atraíam cada vez mais interessados.
Os carrinhos de Handler também eram rápidos: o truque estava nas rodinhas e em uma “suspensão”, feita de um eixo único, metálico e flexível.
Outra artimanha da empresa foi o uso de uma pintura chamativa, apelidada de Spectraflame. Ela fazia com que o metal da carroceria ficasse brilhante sob as cores.
Na mesma década também houve a utilização de novas técnicas de produção, como a impressão “tampo”, que permitia o uso de decalques na carroceria.
Algumas experiências não deram certo, como a introdução de motocicletas na linha, em 1975. Com poucas vendas, só voltaram em 1997. Mas outras tentativas foram bem-sucedidas e, de certa forma, pioneiras.
Em 1982, o McDonald’s incluiu os carrinhos nos kits do McLanche Feliz. Esse modelo de negócio serviu de base para outras parcerias de venda.
Três anos depois, era a vez de as crianças encontrarem Hot Wheels dentro das embalagens de cereal da Kellogg’s. Até nos postos Shell era possível adquirir os brinquedos.
Mas apesar do sucesso, os carrinhos da Mattel ainda eram vistos como brinquedos. Só no fim dos anos 80 a marca passou a ser vista como colecionável. A data coincide com a maturidade da primeira geração de crianças que, 20 anos antes, brincavam com eles.
Em 1987, foi realizada a primeira convenção de fãs. A partir daí, a Mattel começou a explorar um novo público: os colecionadores. Hoje existem lojas dedicadas a eles e a própria matriz cultiva o relacionamento com hobbistas.
Durante os anos 90, a Hot Wheels já estava consolidada como a número 1 do mundo. E, para comemorar os 25 anos da marca, foi lançada uma linha premium com vendas exclusivas pela Toys “R” Us, a rede de lojas de brinquedos mais tradicional dos EUA.
A estratégia era genial: a Mattel venderia carrinhos especiais para os pais colecionadores e eles também comprariam os carrinhos básicos para os filhos. A ideia de vender produtos exclusivos em determinadas redes funciona até hoje.
Há séries especiais só encontradas no Walmart (cadeia de supermercados) ou no Kmart (uma varejista semelhante às Lojas Americanas).
Essas ações engrossaram o caixa da empresa e levaram à aquisição da marca que motivou o nascimento da Hot Wheels. Em 1997, a Matchbox foi comprada pela Mattel.
QUATRO RODAS conseguiu um tíquete dourado para visitar o quartel secreto da Hot Wheels – um galpão localizado em Los Angeles, nos Estados Unidos.
Apesar da localização badalada, quem passeia pelas avenidas da cidade não encontra nenhum logotipo. A discrição extrema ajuda a preservar o nascedouro dos brinquedos da Mattel, pois de lá também saem outros produtos igualmente famosos, como as bonecas Barbie e Monster High.
No setor da Hot Wheels, encontramos Ryu Asada, um dos 24 designers responsáveis pela linha básica dos carrinhos.
A cada duas semanas, Asada apresenta um novo projeto às outras áreas para aprovar a coleção do ano seguinte. Além do design, é dele a missão de projetar as peças que compõem a miniatura.
Na sequência, os arquivos digitais com os desenhos são enviados para uma impressora 3D. “Esse equipamento revolucionou o fluxo de trabalho. Há cinco anos, tínhamos que enviar os desenhos para a Ásia, onde eram feitos os protótipos. Isso levava uma semana. Hoje essas provas ficam prontas em 5 horas”, explica.
Quando o modelo é aprovado, passa para uma equipe de engenheiros, que verifica os padrões de conformidade de materiais e realiza testes de segurança do brinquedo.
O método produtivo também é avaliado, pois o setor de manufatura precisa atestar que o visual dos novos carrinhos possa ser fabricado dentro de uma meta de custo.
A Mattel não fala em números, mas afirma que cerca de 6 milhões de carrinhos são produzidos semanalmente na Malásia, onde fica sua principal fábrica – a outra está na Tailândia.
Mais de 20 milhões de unidades são vendidas anualmente no Brasil, o que faz do país o terceiro maior mercado mundial, atrás dos Estados Unidos e México.
Aqui, a relação da filial com os colecionadores tem altos e baixos. Embora haja a preocupação em se aproximar dos entusiastas, as iniciativas da Mattel são tímidas.
Esse público alega estar desamparado pela empresa, que se foca em crianças. Por isso, no Brasil, os encontros são organizados por clubes ou lojistas.
Há sete anos, a loja de brinquedos Semaan reúne entusiastas mensalmente, em São Paulo. “Notei que muitos adultos procuravam Hot Wheels para eles mesmos. Havia uma demanda específica e isso motivou os eventos”, diz o diretor comercial, Marcelo Mouawad.
Ele é um dos poucos lojistas locais que proporcionam atendimento específico ao público fanático pelos carrinhos de ferro.
Segundo Douglas Fernandes, pesquisador e fundador do blog T-Hunted (t-hunted.com.br), os lançamentos dos últimos anos sugerem que a Mattel não tem pensado só em crianças ao criar novos carrinhos.
“Desde os anos 2000, a empresa tem reduzido a quantidade de modelos fantasiosos, com cara de animais ou objetos, pois não vendem bem”, diz Fernandes.
O colecionador se refere a modelos como o Carbonator, um carro de corrida inspirado em uma garrafa de refrigerante, com uma tampinha plástica no lugar do radiador.
Hoje, os eletrônicos (celulares, tablets e videogames) são os concorrentes da indústria, pois competem com os brinquedos pelo interesse das crianças. E isso faz do colecionismo um filão interessante. Não por menos, tem aumentado a quantidade de miniaturas temáticas, que exploram a cultura pop e o entretenimento.
Desde sua fundação, a Mattel explora a imaginação desenfreada de seus designers. E uma das razões é o custo. “Modelos desse tipo evitam gastos com royalties. Ao lançar réplicas, é necessário pagar licenciamento às marcas”, explica o designer Ryu Asada.
Colecionismo não é coisa de criança: há catálogos de modelos e variações de pintura, cotações de preços, especuladores, convenções, leilões, exposições e sites especializados, que tentam antecipar os lançamentos.
Isso tudo faz da Mattel um polo de influência que ajuda a fomentar a cultura automotiva. E faz de seu centro de desenvolvimento um dos locais mais bem-guardados da empresa.
Ele desenha Hot Wheels todo dia. E é pago para isso
Conversamos com Ryu Asada, um dos designers da Mattel. Ele conta que, na escola, desenhava carros nos cadernos de matemática. Hoje, aos 36 anos, fez da diversão sua profissão.
Como você começou a trabalhar na Hot Wheels?
Migrei do Japão para os EUA nos anos 2000 para estudar na Art Center College of Design, na Califórnia. Em um evento, conheci designers da Mattel e fui convidado para integrar o time da Matchbox, pois eu era desenhista de carros reais – e a marca é notória por suas réplicas fiéis.
Por que os carrinhos da Hot Wheels não são exatamente iguais aos modelos de verdade?
Nós adaptamos o desenho original, pois muitas vezes as linhas mais bacanas e as proporções não ficam legais em escala 1:64. Por isso é necessário exagerar alguns traços e aumentar outros.
Você desenhou o Civic EF e outros modelos da Honda. Tem alguma preferência pela marca?
Minha vida foi marcada pela Honda. Meu pai trabalhou lá e sou fã do Ayrton Senna. Ele corria pela marca e ajudou a desenvolver o NSX – um dos meus favoritos. Além disso, sou dono de um S2000.
De onde vêm as ideias para os carrinhos?
Frequento corridas e procuro referências em assuntos populares, a exemplo de flmes e objetos da moda, como um tênis ou celular.
É mais difícil desenhar um carro real ou uma miniatura lúdica para a Hot Wheels?
As preocupações são outras: não ligo para espaço interno, pontos cegos ou segurança dos ocupantes. Mas não pode haver bordas cortantes ou pontos afados. Além disso, por causa da variedade, o design tem que ser único e marcante. Os veículos das montadoras tendem a ser mais parecidos entre si.
Quais materiais você usa para desenhar?
Só papel e caneta. Faço esboços com uma esferográfica azul. Ou um lápis Prismacolor, também azul. Depois passo o projeto para o soft ware, com uma mesa digital. Por fim, os desenhos 3D são feitos com um equipamento chamado Touch X, da Geomagic.
Você é um colecionador de miniaturas?
Tenho alguns modelos em casa, mas não muitos. Meu escritório tem vários, mas funcionam como referências para meu trabalho.
Vida longa
O Twin Mill é um dos Hot Wheels mais longevos. Foi lançado em 1969 e até hoje faz aparições nas coleções anuais – a última foi em 2014. Também inverteu o processo criativo do brinquedo: foi reproduzido depois em um modelo de verdade, com dois motores funcionais.
Os carros pioneiros
Criação e criatura
Os primeiros Hot Wheels eram feitos a partir de moldes de madeira, confeccionados à mão por artesãos. Para facilitar o trabalho de detalhamento das peças, eram quatro vezes maiores que o produto fnal. Até as partes internas eram projetadas em tamanho maior.
A base de madeira, chamada de matriz, era copiada por uma máquina dotada de um esmeril, que desbastava o metal da ferramenta de estamparia, já reduzindo a proporção para a escala correta – 1:64. Hoje, os desenhos são virtuais e os protótipos são feitos em poucas horas por uma impressora 3D.