Você ajusta o retrovisor do carro e não reconhece o próprio rosto no espelho. Aumenta o som e sua música favorita ofende seu tímpano. O corpo pesa, como ao final de uma maratona. Parece impossível vencer a briga com o músculo mais pesado de seu corpo: a pálpebra.
Quando o sono bate forte, não há remédio ou tapa na cara que resolva. Técnicas não faltam ao motorista teimoso: aumentar o som, abrir a janela, colocar a mão no teto ou parar para tomar um café.
Dirceu Alvez Júnior, da Abramet, Associação de Medicina de Tráfego, explica que os movimentos e o barulho dentro do carro contribuem para que o motorista pegue no sono. “É como um bebê sendo embalado no colo da mãe”, diz o médico.
O mais grave, segundo ele, é que ninguém tem condições de avaliar seu próprio sono. “Não existe um estágio de sonolência que não ofereça perigo. Se sua vista começa a embaçar, está na hora de encostar o veículo. A maioria dos motoristas que dormem e se envolvem em acidentes nem sequer se lembra de ter fechado os olhos.”
A sonolência ao volante já é a segunda maior causa de acidentes nas rodovias brasileiras, uma combinação que pode ser tão perigosa quanto beber e dirigir.
Dados da Associação Brasileira do Sono (ABS) apontam que ele é o responsável por 30% das mortes e 20% dos acidentes em todas as vias do país. Segundo a Abramet, após 19 horas sem dormir há a diminuição de desempenho equivalente a quem bebeu seis copos de cerveja ou três de vinho. E quem dirige após dormir menos de sete horas tem o dobro de chances de sofrer um acidente.
Resolvemos mostrar na prática o quanto o sono é perigoso ao volante em um teste no Autódromo de Interlagos em parceria com o Roberto Manzini Centro Pilotagem e o laboratório Neuro-Sono, da Unifesp (Universidade Federal Paulista de Medicina).
Confira o vídeo do teste completo
Quatro voluntários foram submetidos a um circuito com obstáculos em dois dias, incluindo nosso editor Paulo Campo Grande, o PCG, para verificarmos quanto um piloto experiente é afetado.
No primeiro dia, todos estavam descansados. No segundo, os voluntários estavam totalmente privados de sono, após passarem uma noite inteira sem dormir.
Telemetria
Lucila Prado, médica coordenadora do Neuro-Sono, aplicou testes escritos antes de os participantes dirigirem, para verificar o nível de sonolência de cada um.
No autódromo, ela instalou o eletroencefalograma em cada voluntário. “A ideia foi monitorar nos dois dias a atividade cerebral do motorista dentro do carro, revelando o nível de atenção”, diz.
Para medir exatamente a alteração na direção, o Fiat Mobi usado no teste recebeu sensores montados pela Creare Sistemas, empresa de telemetria veicular.
O equipamento permitia saber o quanto o acelerador foi acionado, a diferença de tempo entre tirar o pé do freio e acionar o acelerador e a força aplicada nos pedais.
“Montamos um circuito bem monótono, por isso colocamos uma longa parada em um semáforo e um slalom a baixa velocidade”, explica Manzini.
O circuito contava com as seguintes provas: slalom (curvas em sequência) de apenas 40 km/h, frenagem a 60 km/h ao comando de uma luz externa e uma parada em semáforo por 40 segundos.
Na noite anterior ao segundo teste, para garantir que ninguém dormiria, todos deveriam mandar em um grupo de WhatsApp mensagens, vídeos e áudios de hora em hora.
“Escolhi ficar em casa e o grupo me ajudou bastante, pois um incentivava o outro. Na madrugada, achei que não conseguiria”, diz PCG.
No dia seguinte, antes das provas, a médica Lucila Prado confirmou que o nível de sonolência dos quatro motoristas era alto. Ao fim do dia, ela concluiu o sucesso da empreitada.
“Todos tiveram lapsos de sono e mudança na direção”, afirma Lucila. Manzini destacou a desatenção dos voluntários com inconstância nos pedais e redução da velocidade (confira na tabela abaixo).
Ele salienta que houve um aumento no tempo de reação do grupo de até 35%. “O motorista deveria melhorar no segundo dia, pois se adaptou ao teste. Mas sob o efeito do sono a maioria piorou.”
Ao fim dos dois dias de teste, todos tiveram lapsos de sono, com redução da atividade cerebral. Houve condutor que teve lapsos que duraram 13 segundos, o que representaria, a 100 km/h, percorrer 280 metros sem atenção na estrada.
Podemos comparar esse lapso com a distração causada ao conversar pelo celular enquanto dirigimos. “Costumamos dizer que entramos no modo automático. E é esse estado que aumenta muito o risco de acidentes”, afirma Lucila.
O teste do sono ao volante
Todos os participantes tiveram o desempenho alterado e sofreram lapsos de sono
Motorista | Tempo para acionar o acelerador no semáforo* | Força g no acelerador na saída do semáforo* | Tempo de frenagem de emergência * | Força g no pedal na frenagem de emergência * | Média do curso do acelerador no slalon * | Lapsos de sono * | Análise Roberto Manzini (Pilotagem) * | Análise Lucila Prado (eletro) * |
Julia Lima, 20 anos, estudante | 0,40 s /0, 97 s piora de 143% | 0,33 g /0,36g piora de 9% | 0,73 s / 2,56s piora de 251% | 0,93 g / 0,97g piora de 4% | 25% / 20% melhora de 20% | Zero / dois lapsos de 5 s | “Ela aumentou o tempo para acionar o acelerador e freio, mostrando um perigoso aumento no tempo de reação.” |
“No monitoramento foi a única que teve que repetir o teste porque andou com o freio de mão levantado.” |
Daniel Osmak, 34 anos, analista de sistemas
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0,43 s/0,37s melhora de 14% | 0,32 g / 0,33 g piora de 3% | 0,8 s / 0,5 s melhora de 38% |
0,93 g/ 1,03 g piora de 11% |
35% / 28% melhora de 20% | Zero / um lapso de 5 s | “O aumento de força no pedal de freio demonstra insegurança na direção e instabilidade.” | “Ele demonstrou um nível de sonolência baixo em relação aos demais, mas foi o suficiente para piorar no teste prático.” |
Rodrigo Morais, 35 anos, analista de sistemas
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0,27s/0,30s piora de 11% | 0,28g/0,33g piora de 18% | 1,1 s/0,7s melhora de 36% | 0,97 g/1,03g piora de 6% | 18%/59% piora de 228% | Zero / Três lapsos de 7 s |
“Apertar o pedal do acelerador até o fim no contorno de curvas revela falta de controle do carro.” |
“Ele foi o que mais apresentou lapsos de sono. No circuito demonstrou mudança de comportamento em quatro provas.” |
Paulo Campo Grande, 52 anos, jornalista | 0,60s/0,63s piora de 5% | 0,31g/0,26g melhora de 16% | 1,5s/0,5s melhora de 67% | 1,1g/0,7g melhora de 36% | 45%/18 % melhora de 60%
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Zero / Dois Lapsos de sono 13 s | “Por ser um piloto de testes, assim que se sentiu confortável, melhorou. Em um teste mais longo a piora seria inevitável.” | “Foi quem teve os mais longos lapsos. Não prejudicou o teste, mas na estrada dormiria em pouco tempo.” |
*Primeiro dia de teste (sem sono) / segundo dia de teste (com sono)
Mitos e verdades do sono
Café, abrir o vidro, lavar o rosto… Na prática, o melhor remédio é parar ao primeiro sinal de sono e dormir por pelo menos 30 minutos
Atitude | Eficácia |
Parar para tomar um café ou outra bebida estimulante (chá preto, refrigerantes à base de cola) | O café tem efeito imediato, mas só dura de 5 a 10 minutos |
Abrir o vidro, aumentar o som do rádio ou colocar a mão no teto | Essas ações não espantam o sono e só atrapalham a sua atenção na via |
Aumentar a velocidade | Ajuda a manter o nível de atenção à frente, mas não ao que se passa ao redor |
Lavar o rosto | Dá uma sensação de alerta, mas o sono volta a aparecer dentro de alguns minutos |