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As cartas do jovem Ayrton Senna

No 12º aniversário da sua morte, surgem cartas escritas por Senna em 1979 que revelam desde cedo o perfeccionismo e o talento do futuro campeão

Por Redação
Atualizado em 9 nov 2016, 14h53 - Publicado em 21 mar 2016, 20h00
Ayrton Senna - 1979

* Reportagem originalmente publicada em maio de 2006

Em 1978, Ayrton Senna da Silva decidiu que era hora de ser campeão mundial de kart. Aos 18 anos, o piloto já havia conquistado os títulos brasileiro e sul-americano. Sem grande apoio financeiro, mas decidido a ser o melhor do mundo, Senna se mandou para a Europa. Em Le Mans (França), conseguiu o quarto lugar no mundial da categoria. Não ficou satisfeito. No ano seguinte, continuou na Europa, participando de diversas provas preparatórias para o campeonato máximo do kart. Foram anos duros. Pela primeira vez, o garoto estava sozinho em um continente estranho. Sem internet, sem fax nem dinheiro para telefonar, o piloto se debruçava em detalhadas cartas para contar as novidades a familiares e amigos.

E é exatamente no 12º aniversário de sua morte que duas dessas cartas vieram à tona. No início do ano, a paulista Gláucia Cechinatto, de 47 anos, estava remexendo em uma antiga caixa onde seu irmão, Antônio Carlos, guardava seus carrinhos de autorama, quando descobriu as tais cartas. Com conteúdo extremamente técnico, parecem escritas pelos engenheiros de uma escuderia. É possível perceber a busca pelo perfeccionismo do jovem piloto. Ele narra ao amigo detalhes técnicos e táticos dos treinos e de duas corridas feitas em 1979, pouco antes da disputa do sonhado mundial.

A primeira carta, escrita na frente e no verso de seis folhas timbradas do Hotel National de Montreux, na Suíça, é datada de 14 de maio de 1979.

“Como você pode ver, aproveitei alguns dias para dar uma escapada da Itália e aqui estou na Suíça passeando um pouco. Estive nos dias 9, 10 e 11 no circuito de Jesolo (Itália). Juntamente comigo estavam um dos diretores da DAP [sua equipe, a Di Angelo Parilla] e o campeão mundial de kart de 1975, o Terry Fullerton, meu atual companheiro de equipe.”

A passagem de Senna pela Itália serviu para testar uma grande novidade no kartismo mundial.

“Testamos dois motores refrigerados a água. Eles mostraram-se fantásticos, pois viraram meio segundo mais rápidos que o mesmo modelo com refrigeração a ar. O Fullerton deu as dez primeiras voltas e então eu comecei os testes de verdade. Foram comparados sete motores: dois a água e cinco normais.”

Em três parágrafos e com um desenho, Senna informa ao amigo que melhorias ainda são necessárias.

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“Precisa diminuir bastante o pistão para reduzir o atrito na parte superior traseira, pois sem isso seria fatal uma bela engripada. Se não entender, peça explicação para o Tchê, que com certeza saberá explicar.”

Tchê é Lucio Pascoal Gascon, preparador do motor com o qual o piloto venceu sua primeira corrida de kart, em 1º de julho de 1974. “No começo da carreira, ele só queria saber de acelerar. Treinava sem parar, dez vezes mais do que qualquer outro piloto”, diz hoje Tchê. “Depois, ele começou a dar palpite e não parou mais.” O espanhol trabalhou com Senna até 1981 e hoje, aos 70 anos, continua com sua oficina ao lado do autódromo de Interlagos. De volta às cartas, Ayrton continua se aprofundado na mecânica do kart.

“Estes motores são a grande surpresa do ano, pois são mais velozes, mais resistentes ao calor e, conseqüentemente, às quebras constantes durante as corridas. O peso do conjunto inteiro (radiador, bomba de água, correia, mangueiras e motor) é o mesmo de um motor normal: 13,5 kg. Portanto, só é contado o litro e meio de água necessário para a refrigeração.”

Ayrton Senna - 1979

Antonio Carlos e Ayrton Senna se conheceram no mundo das corridas. Chegaram a correr juntos nos anos 70. Quando Senna voou para a Europa, manteve contato por carta com o amigo. “Depois de deixar as pistas, Antonio Carlos passou a escrever reportagens sobre automobilismo”, conta Glaucia. “Eu acho que é por isso que as cartas são tão técnicas”, diz a irmã. Na segunda carta, escrita em Milão (Itália) e datada de 11 de junho de 1979, Senna usa 12 folhas sulfite para falar da proibição de utilizar os motores refrigerados a ar e para narrar detalhes técnicos e táticos dos treinos e de duas corridas no mês de junho de 1979: o GP de Jesolo, na Itália, descrito por Senna como um dos piores de sua carreira, e o GP de Wohlen, na Suíça, no qual o brasileiro conseguiu a segunda colocação.

“Caro Amigo. Nos dias 1, 2 e 3 de junho, pode-se dizer que foi uma das piores corridas de que já participei. O clima era de muita tensão e a guerra fria tomava maior força. Na quinta-feira (segundo dia de treinos), consegui o tempo de 45 segundos e 70 centésimos com o motor refrigerado a água. Até então, o melhor tempo era de 46 segundos e 15 centésimos obtido pelo Terry Fullerton e pelo Micke Wilson. Esta minha marca era realmente dificílima de ser igualada.”

O tempo começou a virar para Senna no terceiro dia de treinos. A equipe do brasileiro enfrenta problemas com os pneus, com o carburador, com o chassi e com a autorização para usar os motores refrigerados a ar. No fim, o piloto conseguiu apenas o décimo lugar.

“Os famosos e esperados pneus especiais da Continental só serviram para piorar o tempo e os dirigentes afirmavam que não estava permitido o uso de motores refrigerados a água. Mas o diretor da DAP fez um acordo com o diretor da Yame (Bruno Grana): nós não utilizaríamos o motor a água e eles nos cederiam pneus especiais italianos.”

Na semana seguinte, Senna foi para o Grande Prêmio da Suíça. O brasileiro conseguiu o melhor tempo nos treinos de sábado. Sobre a segunda bateria, Senna conta o seguinte:

“Na largada, consegui pular do 4º para o 2º posto, mas logo na segunda volta caí para 3º. O 2º colocado começou a me amarrar para que o seu companheiro de equipe se distanciasse na 1ª posição. Foi então que com muita manha o peguei desprevenido e fiz com que rodasse e fiquei na 2ª posição.”

Ayrton Senna usou estratégia parecida na terceira bateria, na qual ele acabou largando em terceiro lugar e logo na saída ganhou uma posição.

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“Fiquei estudando o 1º colocado, o Busslinger, e ao mesmo tempo ameaçando ultrapassá-lo em pontos em que jamais o faria. O intuito era forçá-lo a andar mais rápido e errar. Foi exatamente o que aconteceu na sexta volta. Ele errou e abriu na saída de curva, mas para a surpresa de todos isto não aconteceu, pois preferi continuar na 2ª posição e esperar as últimas voltas para efetuar a ultrapassagem. Mas na volta seguinte, ele cometeu o mesmo erro e eu ultrapassei. Foram sete voltas de aperto. Faltando duas voltas, meu motor caiu um pouco de rendimento, mas felizmente consegui manter a 1ª posição, vencendo assim a bateria final, o que resultou no 2º posto na classificação geral do dia.”

Para encerrar a segunda carta, Senna escreve:

“Acho que está tudo aqui, procurei detalhar o máximo possível… Você deve estar louco com tanta coisa que escrevi, foi o melhor que consegui fazer. Bem, vou parando por aqui pois tenho que responder umas cartas do pessoal de casa. Um grande abraço, Ayrton.”

Meses depois, viajou para Estoril, em Portugal, para o mundial. Ele chegou ao kartódromo certo da vitória e no cômputo das três baterias terminou realmente em primeiro. Deu a volta comemorando, socando o ar. Mas, ao chegar ao box, foi informado que, pelo critério de desempate, o holandês Peter Kone era o campeão. “A decisão polêmica deveu-se a uma mudança mal explicada no tapetão”, conta Lemyr Martins, colaborador da QUATRO RODAS e autor de Uma Estrela Chamada Senna. “Foi o único título que ele não conseguiu na carreira.”

 

O AMIGO

O destinatário das cartas, Antonio Carlos, correu alguns anos de kart quando conheceu o jovem Senna. O dinheiro acabou e ele abandonou as pistas, mas a amizade com Ayrton ficou. Infelizmente Antonio não veria a carreira do amigo vingar. Em 1982, aos 25 anos, morreu dormindo, devido a um problema pulmonar. 

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